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Dia do Índio não é sobre a “Iracema”, de José de Alencar

19 de abril é o Dia do Índio, data estabelecida pelo Decreto-Lei N. 5540, de 2 de junho de 1943. A lei, assinada pelo presidente Getúlio Vargas, foi um dos resultados do Primeiro Congresso Indigenista Interamericano, realizado no México em abril daquele ano. Um dos objetivos do evento era a adoção formal do indigenismo como política de Estado nos países signatários. O objetivo deste texto não é analisar se tal política funcionou ou não, mas, sim, promover uma reflexão sobre como a cultura indígena é abordada nas escolas. Será que fazer meus alunos lerem “Iracema” e “O guarani”, de José de Alencar, já é falar de cultura indígena na escola? Não, o Dia do Índio não é sobre isso! O Dia do Índio não pode ser visto de forma tão superficial!

Os meus leitores e seguidores nas redes sociais sabem que eu sou professora desde os 17 anos (Eu conto isso nesta página AQUI.). Eu comecei pela Educação Infantil (as crianças até 5 anos) e, na primeira escola onde trabalhei após me formar, era obrigatório fazer os alunos pintarem desenhos sobre datas comemorativas e vesti-las de acordo com a data. O resultado disso era 13 de maio com criança enfeitada com corrente de papel crepom e 19 de abril com criança enfeitada com uma suposta pena de índio. Eu sabia que havia algo errado com aquela abordagem, mas, quando eu questionei, fui chamada de relaxada (Sim, você leu direito!). Eu lembro até hoje: “As mães vão achar que a tia Andréa é relaxada e não sabe fazer as roupinhas de índio…”. Isso foi em 1990!

E como foi trabalhar a temática no Ensino Médio? Não lembro como isso se deu na primeira escola, mas lembro da segunda: eu não tinha o direito de selecionar os livros paradidáticos (Acho que esse termo dá um bom tema para outro artigo) e era obrigada a usar o que a direção da escola havia escolhido durante as férias. Resultado: para discutir o 19 de abril, “Iracema” e “O guarani” eram leituras certas. Fiquei anos na rede privada e foi libertador quando, em 2005, comecei a trabalhar em uma escola pública federal! Encontrei profissionais que pensavam como eu, que me ensinaram novos métodos, que me fizeram refletir sobre as minhas práticas pedagógicas. E, principalmente, que concordavam comigo em dizer que “19 de abril não é sobre o José de Alencar!”

Por que algumas pessoas pensam que os romances do século XIX são perfeitos para o Dia do Índio?

Para responder a essa pergunta, é necessário lembrar de algumas das características da literatura brasileira produzida no século XIX. “I Juca Pirama” (1851), de Gonçalves Dias, “O guarani” (1857) e “Iracema” (1865), ambos de José de Alencar, são obras publicadas no contexto daquilo que se convencionou chamar de Primeira fase do Romantismo.

Essa literatura serviu ao propósito de estabelecimento de uma identidade nacional, e usar a imagem dos povos originários brasileiros, conhecidos desde a Carta do Descobrimento, foi uma estratégia de construção daquela identidade. Isso funciona para falar sobre a cultura indígena nos dias atuais? Usar apenas essa literatura para abordar a cultura indígena na sala de aula é válido?

A Lei N.11.645, de 10 de março de 2008, modifica o Art. 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei N. 9394, de 20 de dezembro de 1996), a fim de estabelecer que “nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena“. Em 2003, a LDB fora alterada para incluir a obrigatoriedade de história e culturas africanas. Por que isso tem relação com o tipo de literatura levada às salas de aulas?

José de Alencar e Gonçalves Dias eram homens brancos, escrevendo sobre indígenas, a partir do olhar e do imaginário de homens brancos. A palavra-chave do Romantismo, em sua “primeira fase”, é idealização: idealizava-se a nação, a natureza, os amores e até o seu povo originário. O Romantismo foi à Carta de 1500 buscar a imagem dos indivíduos descritos por Pero Vaz de Caminha:

“A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de encobrir ou de mostrar suas vergonhas; e disso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. (CAMINHA, 2007, p. 95)

JOSE MARIA DE MEDEIROS. “Iracema” (1881)

Se já era equivocado limitar-se a esse tipo de abordagem antes da LEI 11.645, depois dela, então, é inconcebível! Índio idealizado não cabe mais no nosso sistema educacional (ou não deveria caber)! Ouça o podcast que está no fim do artigo e descubra que até o termo “índio” é inadequado.

Como, então, usar as obras clássicas para abordar esse mesmo tema?

Confira abaixo a minha lista de sugestões. São atividades elaboradas por mim e executadas em muitas turmas.

1. Leitura crítica das obras clássicas

Você foi obrigado a pedir que seus alunos lessem “O guarani”, “Iracema” ou qualquer outra obra de temática indígena? Compreenda e assuma que obra de temática indígena no século XIX apresenta uma visão idealizada e estereotipada sobre os povos ancestrais brasileiros.

Primeiro passo: Ler os clássicos e a Carta

Se possível, leia a Carta com a turma. Se não der para ler o documento todo, selecione os trechos em que há descrição dos primeiros brasileiros: homens e mulheres são descritos igualmente? Que comentários são feitos sobre uns e outras?

Nesta etapa, o professor poderá associar diversos itens do seu conteúdo programático, como gêneros e tipos textuais.

Segundo passo: Análise histórica das obras

Ajude a turma a questionar a representação de indígenas nas obras clássicas: se os autores, homens brancos do século XIX, não tiveram contato real com aqueles indivíduos, como foram capazes de descrever seus hábitos e suas tradições? Existem registros de que tenham feito algum tipo de pesquisa? Existem registros históricos (além da Carta) que eles possam ter consultado? Esta etapa poderia constituir uma aula interdisciplinar com o professor de História.

Terceiro passo: Desconstrução do indígena idealizado romântico
Ilustração Não somos Iracema, de Yacunã Tuxá. Imagem: Yacunã Tuxá/Reprodução

Converse com os alunos sobre a imagem que nós brasileiros temos, nos dias atuais, sobre os povos indígenas: o que nós sabemos sobre eles? Conhecemos algum? Algum aluno tem conhecimento sobre algum ancestral indígena?

Quem são os indígenas brasileiros? – Coluna: Daniel Munduruku. Se não conseguir visualizar o player, assista no YouTube.
Como vivem os indígenas no século XXI? Como é a relação com sua cultura? Como é a sua rotina?
Márcia Kambeba – culturas indígenas (2016). Se não conseguir visualizar o player, assista no YouTube.

Nesta etapa, apresente aos alunos: textos literários, canais de vídeos, artigos produzidos por indígenas.

Debata com os alunos sobre a importância dos sobrenomes. Por que é tão difícil encontrar alguém com sobrenome indígena? Pergunte aos alunos: por que todo sobrenome que conhecemos é de origem europeia? O que aconteceu com os nomes dos povos originários?

A atividade aqui apresentada foi pensada para segundo ano do Ensino Médio, mas nada impede a sua adaptação para outras turmas, até mesmo do Ensino Fundamental. O que se espera é que a escola aborde a temática não apenas no dia 19 de abril, mas ao longo do seu ano letivo, em diversas atividades.

Leia também:

Artistas indígenas fogem dos rótulos: “Ninguém aqui é Iracema”. – O artigo publicado no site TAB Repórteres na Rua promove a reflexão sobre a imagem romantizada sobre o indígena e apresenta diversas ações culturais desenvolvidas por eles.

Podcast: O que não fazer no Dia do Índio

Como material de debate, peça à turma que ouça o podcast “O que não fazer no Dia do Índio”, palestra proferida pelo Prof. Dr. Daniel Munduruku, em 25/09/ 2018, durante a quinta edição do “Educação 360”, no Rio de Janeiro (RJ). O educador propõe uma reflexão sobre a terminologia “índio” e sobre a imagem estereotipada que há a respeito de seu povo.

E-book “Culturas indígenas na aula de literatura”1

Eu organizei, em formato e-book, a atividade apresentada aqui. O material foi didaticamente formatado como uma sequência didática. Esse e-book foi elaborado após uma aluna de pós-graduação compartilhar sua angústia sobre a obrigatoriedade de usar os clássicos na abordagem sobre as culturas indígenas; sendo assim, decidi colocar no papel (ou na tela) aquilo que eu fizera diversas vezes.

Clique no botão abaixo e baixe o seu exemplar (Arquivo hospedado na Eduzz).

Nota:

1 Atualização em fevereiro de 2024: Em 2021, data da publicação original deste post, este e-book foi publicado com o título “Dia do Índio não é sobre Iracema”.

2 Comments

  1. Que matéria maravilhosa, profe Andrea.
    Me enche de felicidade ver professores trabalhando a questão indígena nas escolas de maneira crítica e contemporânea.
    Um forte abraço e vamos juntos nessa caminhada.

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Andréa Motta

Professora de Língua Portuguesa , Literatura e Formação do Leitor Literário no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro.

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