Li na Placa Língua Portuguesa Linguística

“Li na placa”: textos publicitários

Recebi, em fevereiro, um pedido de parceria que consistia em publicar um texto acerca dos erros gramaticais cometidos em materiais publicitários. Obviamente, o único link seria o da agência que enviara a solicitação. Recusei a parceria por vários motivos e, principalmente, porque nem tudo o que foi apontado como “erro de português” era, de fato, um. Eu corrigi o texto original e o devolvi com muitas considerações. Para a edição de hoje da coluna “Li na placa”, eu adaptei dois dos comentários enviados por mim na devolução.

Placa 1

Comentário

A imagem acima foi produzida pela Agência 11/21 para a campanha anti-fumo da ABRAD (Associação Brasileira de Alcoólicos e Drogas). O foco da mensagem é a frase “Fumar prejudica o célebro” (grifo meu). Se o leitor analisar esse texto superficialmente, verá apenas um erro ortográfico. A mensagem que eu recebi tratava a campanha como “um erro grotesco”. Será mesmo? E se analisarmos todo o conjunto e não apenas a palavra?

Vejamos a composição do texto publicitário: fundo amarelado; uma figura disforme, simulando a fumaça do cigarro amassado no chão, e uma frase de impacto em grandes letras brancas. O objetivo da campanha era destacar o efeito negativo do fumo nas funções cerebrais; portanto, a troca ortográfica não foi arbitrária, assim como a escolha tipográfica também não.

A palavra “celébro” foi corretamente grafada? Não! O efeito estético seria o mesmo se o publicitário escrevesse certinho “cérebro”? Não! Dá pra “carimbar”, portanto, como um “erro grotesco”? É óbvio que não!

Placa 2

Essa imagem foi enviada com o observação de que seu criador cometera um erro de sintaxe: havia se enganado sobre a regência do verbo obedecer, transitivo indireto regido da preposição A. Será que errou mesmo ou esse pequeno desvio também serviu a uma estratégia de marketing?

Você lembra da propaganda que era veiculada na televisão? Assista e preste atenção ao som que acompanha o slogan da campanha:

Se não conseguir visualizar o player, assista no YouTube.

Percebeu que a frase é dita no mesmo instante em que surgem os sons do refrigerante? Como representá-los na escrita? A imagem e o vídeo são ótimos para abordarmos três assuntos na aula de língua portuguesa: figuras de linguagem (onomatopeia e aliteração), funções da linguagem (apelativa) e sintaxe (crase).

A onomatopeia é a tentativa de reproduzir um som por meio da escrita. Leia em voz alta a frase da campanha publicitária e preste atenção: “Obedeça sua sede”. Temos aqui uma construção que pode ser, sim, compreendida como uma referência ao som que ouvimos no vídeo e também um exemplo de aliteração, a figura de linguagem que consiste na reprodução de um mesmo som consonantal (Não vamos confundir “som” com letra, ok?).

Essa tentativa de reprodução do som do refrigerante só é possível, porque temos três sílabas, em sequência, nas quais observamos dois grafemas (ç, s) para representar o mesmo fonema /s/. Pense bem: a inserção de uma preposição naquela frase impediria esse efeito sonoro e estético.

Confira a explicação do professor Renato Miguel Basso sobre os conceitos de grafema e fonema:

Não podemos confundir letras e grafemas. Um grafema é a representação gráfica de um fonema. Assim, por exemplo, o fonema /ʃ /, que é o som de <x> em “xícara”, pode ser representado pelo grafema <x> e também pelo grafema <ch> , que aparece em “chá”. […] Note também que a sequência <ch> é um único grafema, justamente porque representa um fonema, por sua vez, composto por duas letras, e é portanto um dígrafo. As letras são os componentes de um sistema de escrita. (BASSO, 2019, p.39)

A função apelativa da linguagem é inerente aos textos publicitários, uma vez que o objetivo é induzir o receptor a executar uma determinada ação; nesse caso, a ação desejada é que o consumidor compre o refrigerante.

Podemos usar a mesma frase para falar de sintaxe, porém não cabe aqui “crucificar” o publicitário por não ter usado a regência que a gramática normativa determina para o verbo obedecer. Não cabe perguntar à turma qual é o erro de português contido na frase; o contexto determina que se mostre ao aluno o efeito provocado pela ausência da preposição. Qualquer coisa diferente disso é só manutenção de um pensamento equivocado de que tudo em linguagem pode ser resolvido com etiquetas de “certo” e “errado”. Decoramos muitas regras, mas aprendemos muito pouco…

Nas minhas aulas de língua portuguesa, os textos publicitários são um material constante. Em Sala de aula: funções da linguagem e propaganda, eu contei como, em uma de minhas turmas, mostrei de que modo a publicidade se apropria de determinados recursos linguísticos para atrair a atenção do leitor.

Em Estudos de Linguagem, temos um nome para essa necessidade de corrigir algo que não está errado ou que não precisa ser corrigido. Eu escrevi sobre isso em “Hipercorreção linguística. Já ouviu falar dela?“.

Se quiser entender mais o que é hipercorreção, assista ao vídeo “Errei sim! As armadilhas da hipercorreção”, conversa entre Marco Marcionilo e Marcos Bagno. Confira abaixo:

Se não conseguir visualizar o player, assista no YouTube.

É o que digo todos os dias aos meus alunos do ensino médio: nem tudo, na análise de um texto, é resolvido com consulta ao dicionário ou à gramática; às vezes, só interpretar o que foi lido já é o suficiente.

Li na placa é uma coluna semanal, publicada aos sábados, cujo objetivo é analisar textos da publicidade e do comércio. Confira o primeiro texto da coluna: Li na placa, a nova coluna do blog.

Referência:

BASSO, Renato Miguel. Descrição do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2019 (Série Linguística para o Ensino Superior, 8).

2 Comments

  1. Como sempre muito bem fundamentado suas explicações. Fazendo uma comparação grotesca, lembrei do conceito de licença poética que define a “liberdade que toma o poeta, algumas vezes, de transgredir as normas da poética ou da gramática”.
    Nas aulas que administrava eu dizia aos alunos que devemos ter uma visão espacial de tudo que lemos e principalmente uma leitura crítica.

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Andréa Motta

Professora de Língua Portuguesa , Literatura e Formação do Leitor Literário no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro.

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