Língua Portuguesa

“Alquingel”: neologismos e o funcionamento das línguas

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada

(Manuel Bandeira. Evocação do Recife)

Ensinar língua portuguesa vai além de determinar o que é “certo” ou “errado”. Na formação do profissional de Letras está também a compreensão do funcionamento das línguas naturais¹ e apenas a consulta aos dicionários e às gramáticas normativas não nos ajuda a entender e a descrever o uso da língua no dia a dia. Um ótimo exemplo disso é a pronúncia “alquingel” para a expressão “álcool em gel”.

As gramáticas tradicionais² seguem um modelo clássico de descrição linguística e não se ocupam do processo de formação de palavras; na maioria das vezes, limitam-se a enumerar tais processos e a listar exemplos. Basílio (1991) explica que há duas interpretações para “formação de palavras”: o processo de formar palavras e a maneira como as palavras estão constituídas. As gramáticas normativas seguem a segunda interpretação. Elas não analisam os processos envolvidos nas inovações lexicais.

Há uma consequência direta disso para a educação linguística, uma vez que a maioria das escolas dedica-se apenas ao ensino do que é prescrito pela gramática normativa. Contrariando a sua formação, mas obedecendo ao que mandam o dono da escola e os livros didáticos ruins, o professor não ensina ao aluno nem a observar a língua como algo em mudança todos os dias, nem a reconhecer esse processo como legítimo. Ensina-se muita gramática, mas pouca língua.

Não estou afirmando que não se deva ensinar a gramática da língua portuguesa – quem disser o contrário ou nunca leu este blog ou não entendeu o que leu até aqui! O que digo e reafirmo é que gramática e língua são duas coisas totalmente diferentes. Fazer o aluno decorar regras e nomenclatura não é ensinar o funcionamento das línguas. Fazer o aluno decorar tabela de prefixos, sufixos e radicais não é ensinar a refletir sobre a língua! O aluno que só decorou nomenclaturas e regras não saberá explicar, por exemplo, o “alquingel” do título deste texto.

Algumas horas atrás, vi a publicação abaixo no Instagram e achei sensacional. O professor Marcus Vinícius Oliveira, criador do perfil @ensinoelinguagem, comentou, com muito bom humor, essa pronúncia. Assim como eu, ele é do Rio de Janeiro e esse é o jeito de falar que mais ouvimos entre os cariocas. Em sua postagem, o professor diz ter surgido um neologismo.

https://www.instagram.com/p/B-GDE1plyma/?utm_source=ig_web_copy_link
Se não conseguir visualizar a publicação, acesse o Instagram por este link.

Uma busca rápida pelas principais redes sociais mostra que alguns usuários gostaram da sonoridade e, como em uma grande brincadeira, até adotaram o termo como nicks em seus perfis. Enquanto uns brincam com a nova expressão, outros se apressam em dizer que “alquingel não existe”. Como diz aquele famoso personagem humorístico: “Há controvérsias!”. Se o povo fala, existe… Eu ouso dizer que há em “alquingel” processo morfológico semelhante ao que resultou em “você”, vocábulo usado por 10 entre 10 professores para explicar o desenvolvimento da língua portuguesa: vosmecê, vossemecê, vossa mercê, vosmicê, você, ocê, (E, dependendo do estado brasileiro, é “cê” mesmo!).

Há, pelo menos, três coisas que todo professor de língua portuguesa estuda na graduação: 1) língua oral e língua escrita são modalidades diferentes de língua; 2) a língua oral muda muito mais rápido do que a escrita; 3) todas as línguas se renovam, algumas palavras deixam de ser usadas (ou ganham outros significados) e uma “grande quantidade de unidade léxicas é criada pelos falantes de uma comunidade linguística” (ALVES, 2007, p. 5). A esse processo de criação dá-se o nome de neologia; o que resulta dele é chamado neologismo.

Como os neologismos são formados?

1. Neologismos fonológicos

Na neologia fonológica, surge um léxico totalmente inédito, sem base em nenhuma palavra já existente. É um fato raro. Alves (2007) afirma que a unidade léxica gás tem sido interpretada como oriunda do grego khaos.

2. Neologismos semânticos

Basílio (1991) explica que são muitas as maneiras de aparecimento de um neologismo semântico e cita alguns: metáforas, metonímias, sinédoques. “Vários significados podem ser atribuídos a uma base formal e transformam-na em novos itens lexicais” (p.62).

3. Neologismos por empréstimos linguísticos

Nesse tipo de neologia, a ampliação do léxico se dá por meio do contato com outras línguas. É encontrado facilmente em vocabulário dos esportes (Já escrevi sobre isso no texto Língua Portuguesa e futebol), da economia, das artes, da informática e em tantas outras áreas de conhecimento.

4. Neologismos sintáticos

Na neologia sintática, ocorre a combinação de elementos já existentes no sistema linguístico português. É o que ocorre, por exemplo, em diversas palavras já assumidas pela comunidade de língua portuguesa, mas que, em algum momento da história, foram neologismos: guarda-chuva, madrepérola, fidalgo.

Observe atentamente fidalgo, palavra que também é queridinha dos professores para explicar as mudanças linguísticas. Sua origem está em filho + de + algo (Na Idade Média, algo tinha sentido diferente do atual e correspondia ao nosso pronome indefinido alguém). Em fidalgo, temos uma palavra composta por aglutinação: unem-se palavras por meio de alteração fonética. Não é exatamente isso que está acontecendo, na fala, com “alquingel” (álcool + em + gel)?

Leia mais no blog:

Jogos Paraolímpicos ou Jogos Paralímpicos?

Notas:

¹ Língua natural é qualquer sistema linguístico desenvolvido pelo ser humano, de forma não premeditada. Ex.: português, francês, alemão.

²Gramática Tradicional é o termo usado como referência ao campo de estudos voltado apenas para os usos literários dos grandes escritores do passado. A GT dedicava-se exclusivamente à língua escrita. Era uma tentativa de descrever em qualquer língua os conceitos que serviam, na Antiguidade Clássica, ao grego e ao latim. Com o passar do tempo, a GT passou a ser usada como “um código de leis, como uma régua para medir todo e qualquer uso oral ou escrito de uma língua” (BAGNO, 2001, p.16) .

Referência:

ALVES,   Ieda Maria.  Neologismo: criação lexical. 3.ed. São  Paulo: Ática,  2007. (Série Princípios, 191)

BAGNO, Marcos. Português ou brasileiro?: um convite à pesquisa. São Paulo: Parábola, 2001.

BANDEIRA, Manuel. Evocação do Recife. Antologia poética. 12.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001

BASÍLIO, Margarida. Teoria lexical. 3.ed. São Paulo: Ática, 1991 (Série Princípios, 88)

3 Comments

  1. Boa noite, professora, gostaria de tirar uma dúvida. Estou iniciando o estudo de letras este ano de 2023, porém, antes disso, já ministrava aulas de informática e costumo criar alguns termos, de forma lúdica, para os alunos, por exemplo:

    Presta atenção, guerreiro, esse assunto é dos mais “caíveis” em prova (no sentido de cair nas provas, nas questões).

    Isso pode ser aceito como uma forma neologismo? Ou seria incorreto está usando isso?

    1. Oi, Lucas! Fico feliz por saber que, em breve, terei mais um colega de profissão. A respeito do termo “caíveis”, sim, podemos considerar como um neologismo, motivado por um momento lúdico.

      Caso alguém resolva criar caso (Brinquei, também), explique que, apesar de não ser uma forma prevista no léxico do português, está correta quanto à estrutura morfológica da língua. O sufixo -vel vem do latim e indica “ser passível de ou ser agente de”, além de outros sentidos como, por exemplo, a expressão de uma possibilidade.

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Andréa Motta

Professora de Língua Portuguesa , Literatura e Formação do Leitor Literário no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro.

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