Língua Portuguesa Linguística

Hipercorreção linguística. Já ouviu falar dela?

Você já passou por aquela situação em que, na tentativa de corrigir um texto, acabou achando um erro onde não havia? Eu vejo muito disso nos comentários das redes sociais e em textos jornalísticos. Todo mundo se acha apto a corrigir o “português” alheio e, na maioria das vezes, acaba por cometer um sem número de desvios gramaticais. Em Letras e Linguística, isso tem nome: hipercorreção.

O conceito

Chama-se de hipercorreção ao processo que leva a corrigir também quando não se deve corrigir. Ou seja, na tentativa de ser correto, corrige-se demais.
As fontes da hipercorreção são duas. Uma é a própria variação linguística, que sempre envolve uma forma considerada correta e outra considerada errada. A segunda fonte é a vontade de ser correto. (POSSENTI, 2017)

Dia desses, li duas definições simples: “Hipercorreção é resultado da arrogância e da vontade de falar difícil” e “Quem muito corrige, acaba mudando o que já estava correto”. Achei perfeitas!

Confira alguns casos de hipercorreção:

Caso 1 – Chego ou chegado?

Eu trabalho em uma outra cidade e, para chegar até lá, meu principal meio de transporte é o trem. É inevitável: nós sempre ouvimos a conversa dos passageiros ao lado. Em uma dessas viagens, fiquei perto de duas mocinhas que conversavam alegremente até que uma delas disse: “Eu tinha chegado atrasada. Não encontrei ninguém lá”. A outra, com um arzinho de superioridade, corrigiu: “Tinha chego, né, amiga?”.

Aquilo virou uma discussão “chego-chegado-chego”, até que a primeira moça, cansada da polêmica, rendeu-se ao “chego”. Precisei interferir e resolver a questão. Ao debochar da colega, a segunda moça errou feio (Ou, como falamos aqui no Rio de Janeiro, errou bonito!). Chegar não é um verbo abundante; não há, portanto, o particípio “chego”. É o que sempre digo aos meus alunos: “Não deram conta nem de seus próprios textos, mas querem corrigir os dos outros?”

Leia no blog: O que são verbos abundantes?

Caso 2 – Colocação pronominal

Encontrei a imagem abaixo em um desses fóruns em que os estudantes pedem ajuda para resolver as tarefas escolares.

O autor da pergunta esqueceu de, pelo menos, dois sinais de pontuação. Qual é o erro de colocação pronominal na imagem da campanha? NENHUM!

A colocação pronominal é uma das situações em que a hipercorreção pode ser observada. Todos aprendemos que, de acordo com a gramática normativa, “não se inicia oração com pronome oblíquo”. Decorar isso é ótimo quando desconsideramos algumas questões óbvias que todo profissional de Letras aprende ainda na graduação: escrita e fala são modalidades diferentes de língua; o português brasileiro é diferente do português europeu.

O que isso tem a ver com hipercorreção? Os desavisados não reconhecem a legitimidade do português brasileiro, que é muito estigmatizado por uma mentalidade que só costuma considerar correta a língua portuguesa falada em Portugal. Lá, sim, há uma predominância da ênclise (nem sempre o português europeu foi assim!). Veja o que dizem os professores Celso Cunha e Lindley Cintra:

A colocação dos pronomes átonos no Brasil, principalmente no colóquio normal, difere da atual colocação portuguesa e encontra, em alguns casos, similar na língua medieval e clássica. (CUNHA, 2009, p. 330).

O indivíduo decora (sem entender!) UMA regra e acha que o pronome vem depois do verbo em qualquer situação; ou seja, corrige o que não é para ser corrigido.

Por que a colocação pronominal está correta na frase analisada?

Na frase da campanha, o pronome oblíquo átono me aparece onde deveria aparecer. A justificativa é muito simples: ele é atraído pelo pronome você. Alguém aí, entre os meus leitores, dirá: “Andréa, os pronomes que provocam próclise são os pronomes retos e esse aí é um pronome de tratamento”. Queridos, você deixou de ser pronome de tratamento há muito tempo!

Todos nós sabemos que você veio de Vossa Mercê, pronome que era usado em referência a uma pessoa de classe social superior. O seu uso se generalizou e ele passou a ser usado nas relações entre iguais (É assim, ao menos no Brasil; uma prima, que viajou recentemente a Portugal, disse-me que, naquelas terras, não é educado usar tal pronome.). A democratização do Você provocou um fenômeno linguístico chamado gramaticalização, ou seja, a mudança de uma categoria gramatical para outra. Bagno (2009) afirma que

Vossa Mercê, que era um pronome de tratamento, foi sofrendo aglutinações e erosões fonéticas (vossemecê, vosmecê….você) até se transformar plenamente num pronome pessoal. Por isso é tão descabido as gramáticas e os livros didáticos até hoje classificarem você como “pronome de tratamento”, quando ele é, na realidade, o pronome pessoal de 2ª pessoa mais empregado no Brasil. No entanto, só porque com ele empregamos as formas verbais de 3ª pessoa, as pessoas continuam insistindo em classificá-lo como “forma de tratamento”. Mais honesto seria dizer que você é um pronome de 2ª pessoa do ponto de vista semântico e de 3ª pessoa do ponto de vista morfológico. (BAGNO, 2009, p. 246)

Caso 3 – Uso dos gerúndios

Um dos casos comuns de hipercorreção é aquele que ficou conhecido como gerundismo. Do ponto de vista linguístico, o gerundismo se enquadra no caso descrito neste texto, pois quem o utiliza supõe ser uma forma mais elegante de expressão, embora a construção seja equivocada em relação à estrutura da língua portuguesa.

Podemos entender como um caso de hipercorreção o comentário que fizeram perto de mim, um dia desses, na esperança de que eu concordasse: “O povo agora deu para usar gerúndio!”. Reagi apenas com a seguinte pergunta: “E por que não usariam se é uma das formas nominais da língua portuguesa?”. O problema não é usar o gerúndio; é não usar direito e expliquei isso diversas vezes aqui no blog (Confira todos os textos neste link).

A insegurança do falante e o medo de “errar”, associados ao patético “Eu não sei português”, faz com que o indivíduo ache que tudo o que parece estranho e se distancia do uso habitual é que deve estar certo. Junte tudo isso a uma pitada de arrogância e eis a fórmula da hipercorreção.

Atualização em 25/04/2023: O canal da Parábola Editorial contém um vídeo sobre este assunto. Assista abaixo:

Se não conseguir visualizar o player, abra o vídeo no YouTube.

Referências:

BAGNO, Marcos. Mistura de tratamento. Não é errado falar assim: em defesa do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2009. p. 245-249

CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 5.ed. Rio de Janeiro: LexiKon, 2008.

POSSENTI, Sírio. Descaminhos da hipercorreção. Revista Educação. São Paulo, 22 jun 2017. Disponível em https://revistaeducacao.com.br/2017/06/22/descaminhos-da-hipercorrecao/ . Acesso em 24 jan 2020.

6 Comments

  1. Os teus textos são desnecessariamente agressivos, como se estivesse a falar com uma personificação de alguém que te traumatizou no passado. Escreva de forma mais neutra, “querida”. Ninguém aqui está contra vossa mercê. Seria preferível nem ter lido o texto com esse tom ressentido e ir buscar a informação em outro lugar.

  2. Notei algo já há um tempo e associo à hipercorreção, mas não tenho certeza se é mesmo. É o uso de palavras “mais chiques” levando a uma coisa estranha.

    Exemplo: aluno em prova que estou corrigindo agora. Mais de um escreveu algo como “a pessoa adquire a doença” em vez de “pega a doença” ou “contrai a doença”. Ninguém fala, no dia a dia, que adquiriu Covid, digamos. Nem o uso (que eu acho) correto do verbo é muito usado oralmente, me parece; pelo menos, não lembro de alguém falar que “adquiriu uma calça”, mesmo estando correto.

    Vejo a mesma coisa com o verbo possuir sendo usado no lugar do “humilde” ter. Muito comum em jornal. Aí a pessoa “possui uma doença”, ficando no exemplo anterior.

    E aí? Isso é classificado como hipercorreção? É mesmo erro ou eu estou sendo… hipercorreto? 😀

    1. Oi, J. Alves, tudo bem? Eu vou responder primeiro a este trecho: “É mesmo erro?” Como profissionais de Letras, só podemos considerar “erro” aquelas estruturas não existentes na nossa língua; por exemplo, “viu menina a o carro”. Ou seja, aquilo que entendemos como agramatical.

      No trecho Mais de um escreveu algo como “a pessoa adquire a doença” em vez de “pega a doença” ou “contrai a doença, por que você implicou com “adquirir”, mas aceitou “pegar”? Será que não é apenas uma questão de uso? Como sabemos, essas escolhas estão relacionadas a muitos fatores: idade, grau de instrução, local onde a pessoa reside… Eu usaria esses exemplos em uma aula sobre variedades linguísticas e faria os alunos pensarem em quais circunstâncias ou tipos textuais cada uma dessas expressões seria mais adequada ou aceita.

      1. Olá, Andréa! Primeiramente, obrigado pela resposta.

        Concordo com a questão de uso, claro. Tudo em línguas é questão de uso, afinal de contas. Um dia, qualquer coisa pode virar o certo. Até o gerundismo. Pode um dia desaparecer como uma moda ou pode virar construção aceita, e não há nada que se possa fazer quanto a isso.

        Mas ainda há uma norma culta, que é o que se espera nas respostas a uma prova na universidade, eu acho –claro que isso não influencia na correção (não sou de Letras, obviamente). Nem comento sobre os erros que encontro, mesmo aqueles que tenho certeza de serem erros.

        Na verdade, apesar de terem inspirado a minha dúvida, os exemplos que eu dei nem são bons para a minha pergunta porque esses verbos têm esses sentidos “errados” registrados em dicionário, até. Mesmo soando estranhos, pois para mim adquirir e possuir têm sentido primário de compra, bens físicos, algo assim. Mas, exemplos ruins à parte, minha pergunta continua: vocabulário pode entrar na hipercorreção ou não existem exemplos disso?

        Ah, em tempo: quanto ao pegar… É quase tão ruim quanto “to get” do inglês, de tão versátil e variado que é. 🙂

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Andréa Motta

Professora de Língua Portuguesa , Literatura e Formação do Leitor Literário no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro.

Artigos relacionados