Literatura

Sobre Álvares e Machado: é preciso repensar o ensino de Literatura?

A polêmica da semana é a declaração de um famoso youtuber que disparou o seguinte texto em suas redes sociais: “Forçar adolescentes a lerem romantismo e realismo brasileiro é um desserviço das escolas para a literatura. Álvares de Azevedo e Machado de Assis não são para adolescentes! E forçar isso gera jovens que acham literatura um saco!” Eu acho que ele leu, mas não entendeu… Isso não é problema meu e não é o tema deste texto. Minha questão aqui é a seguinte: o que tudo isso nos diz sobre ensino de literatura nas escolas?

Eu sou professora de língua portuguesa e suas literaturas. É meu trabalho ensinar alunos do Ensino Médio os tais adolescentes a lerem o Azevedo, o Assis e tantos outros autores que vieram antes e depois desses. Note que eu escrevi ensinar a ler: não espero que o meu adolescente de 2021 estabeleça, sozinho, as relações históricas e estéticas sobre um texto de 1853, como é o caso de “Se eu morresse amanhã”, de Álvares de Azevedo. Se eu não lhe ensinar a ler, corro o risco de após semanas de leitura vê-lo reduzir o Dom Casmurro”, de Machado de Assis, a um superficial “traiu ou não traiu?” , como se isso fosse o mais relevante do texto.

Também leciono “Leitura e formação do leitor literário” e, como professora dessa disciplina, é meu trabalho fazer outros professores com a mesma formação que eu repensarem as suas práticas no ensino de literatura.

Nos dois casos, faço a mesma pergunta: o texto que eu escolhi faz sentido para o meu aluno? Eu não estou perguntando se ele gostou do texto; isso é consequência do processo de leitura, não o seu objetivo.

O que chamo de fazer sentido? Usarei como exemplo uma aula dada por mim recentemente. Pedi aos alunos que lessem “O cortiço”, de Aluísio Azevedo. Na aula em que a turma deveria apresentar suas impressões sobre a obra, um aluno fez-me o seguinte relato:

“Comecei achando o texto muito chato; ele é muito descritivo, lento; são parágrafos para descrever um cenário. Depois percebi que, quando a ação começa de verdade, o texto fica menos descritivo e a minha leitura foi bem mais rápida a partir desse ponto!”

Que gancho maravilhoso para falar sobre as características estéticas de um romance naturalista! Eu não precisei dar uma lista de “características do texto naturalista” para o aluno decorar, porque a primeira ele notou sozinho (E quem é ou já foi meu aluno sabe que comigo não tem isso de decoreba de características!).

Como fazer esse texto “chato” (ou “um saco”, como disse o rapaz do YouTube) fazer sentido? Perguntei à turma: “Qual parece ser o motivo para esse início descritivo? O que ele descreve? O que ficamos sabendo dos personagens e dos lugares por meio das descrições? A partir de que momento o autor usou esse recurso linguístico novamente?” Perguntas feitas e respondidas, obtive a resposta: “Ahhhhhh, professora… Agora fez sentido!”

Ora, o texto de Aluísio Azevedo também é uma discussão sobre condições de moradia, exploração de trabalho e escravidão. Ou você achou que o mais importante era Rita Baiana rodando a saia na festa? Essa cena pode ser usada, por exemplo, como mote para debater a imagem da mulher negra na literatura.

Naquela aula, em que eles deveriam comentar apenas os três capítulos iniciais, destaquei as questões de moradia e pedi que os alunos assistissem a dois documentários sobre os cortiços de São Paulo e do Rio de Janeiro. Eu queria que o texto fizesse sentido, queria que eles notassem a atualidade daquela obra literária. Não é a “atualidade” que nos faz, em parte, chamar uma obra de “clássico da literatura”? E justamente por serem clássicos, Machado, Álvares, Aluísio permanecem nos nossos currículos escolares. Eles precisam estar nos programas escolares (É isso que eu defendo!), mas será que o ensino de literatura só é possível por meio dos clássicos do século XIX?

Eu já ouvi uma pessoa dizer que “não existe literatura brasileira depois de Machado de Assis”. Espere aí! Nada de qualidade foi produzido depois de 1908, ano da morte do escritor? E a literatura contemporânea, que também faz parte dos currículos escolares? E Raquel? E Vinícius? E Nelson? E Ariano? E Dias Gomes?

Na minha aula, aparece o clássico do século XIX, mas também aparece a literatura da periferia como, por exemplo, “Menimelímetros”, da Luz Ribeiro, um texto maravilhoso que foi usado pela Graziele Soares, em sua prova didática, quando foi minha estagiária.

Por que a declaração do youtube causou tanta polêmica? Porque ele, que não é professor, disse com a sutileza de uma bola de demolição o que nós, profissionais de Letras, discutimos há anos nos meios acadêmicos: precisamos repensar o currículo e as nossas práticas. Eu acho que o rapaz tem razão sobre o que disse e como disse? Claro que não, mas ele provocou uma discussão que é, sim, pertinente.

Leia mais no blog:

Se eu morresse amanhã análise do poema romântico.

Confira a live que eu fiz no Instagram com o Jean Claude, graduando em Letras, que também fez estágio nas minhas turmas. Nós conversamos sobre identidades literárias e o ensino de literatura.


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3 Comments

  1. ” O Cortiço” é um dos livros que mais li, certamente aquele do qual mais gostei e talvez o que mais tenha deixado fortes impressões em mim. Como esquecer a principal personagem da obra, o próprio cortiço? Como ficar insensível à ideia da época a qual tenta comprovar: o Determinismo? Impossível não associar com as nossas favelas e com o futuro dos seus moradores. Como esquecer de João Romão em mangas de camisa e de sua obsessão pela riqueza? Isso não nos remete aos nossos empresários atuais que não medem esforços para alcançarem o lucro, mesmo que
    as custas dos mais pobres? Como esquecer de Bertoleza, símbolo não apenas de um Brasil escravocrata, mas a síntese fiel do próprio povo brasileiro? Povo ingênuo, que trabalha feito mula e é explorado por esta casta composta de políticos, líderes religiosos e empresários. Como esquecer do sobrado e dos seus moradores? Como não associar as hipocrisias, as traições, as relações de conveniência, os casamentos arranjados das nossas elites do passado com as nossas do presente? E Rita Baiana? Nao seria a representação perfeita desse Brasil tropical, cheio de gingado e sensualidade? Não representa a mulher independente e muito a frente de seu tempo?
    E seu namorado Firmo, o capoeirista, não seria o representante fiel do nosso malandro ou funcionário publico? E Jerônimo, o amante de Rita Baiana, não representaria o homem europeu que não resiste aos encantos da mulher brasileira?
    Cada um de nós brasileiro tem um pouco de Firmo, de Jerônimo, de João Romão… Cada um de nós procura não ser arrastado pela força de “nosso Cortiço”.
    O Cortiço é uma obra que resistiu ao tempo porque não é um simples livro, mas um retrato do nosso Brasil. Do nosso Brasil de outrora e do nosso Brasil de hoje. Mais que isso: é um retrato de cada um de nós.

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Andréa Motta

Professora de Língua Portuguesa , Literatura e Formação do Leitor Literário no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro.

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