O Naturalismo foi um movimento cultural do século XIX e surgiu como uma ampliação do movimento anterior, o Realismo. Eu já abordei o tema em outro texto do blog, mas hoje faço a descrição de minha aula em duas turmas do Ensino Médio. O objetivo era apresentar o movimento literário e, ao mesmo tempo, mostrar como os intelectuais do período demonstraram sua preocupação com as políticas habitacionais do final daquele século.
A apresentação do tema foi feita em quatro aulas de 45 minutos (Eu vejo as turma apenas uma vez por semana e nosso encontro dura, ao todo, 3 horas). Veja abaixo como a atividade foi desenvolvida.
1º momento: Apresentação do tema da aula
O cortiço foi publicado por Aluísio Azevedo em 1890; apenas dois anos após a Abolição dos Escravos e um ano depois da Proclamação da República. A obra – em oposição aos romances do Realismo – apresenta um enredo cujo foco é o cenário da ação e não as pessoas que nele vivem. Os alunos observaram que Azevedo usa recurso da metonímia para, por meio de dois cortiços cariocas, promover a reflexão sobre os diversos grupos que viviam naquele tipo de habitação. Indiretamente, o romancista trata de problemas sociais comuns a todos os cortiços. Outra figura de linguagem muito explorada é a prosopopeia, uma vez que o cortiço é tratado como um “organismo” vivo:
As casinhas eram alugadas por mês e as tinas por dia; tudo pago adiantado. O preço de cada tina, metendo a água, quinhentos réis; sabão à parte. As moradoras do cortiço tinham preferência e não pagavam nada para lavar. […].
Graças à abundância da água que lá havia, como em nenhuma outra parte, e graças ao muito espaço de que se dispunha no cortiço para estender a roupa, a concorrência às tinas não se fez esperar; acudiram lavadeiras de todos os pontos da cidade, entre elas algumas vindas de bem longe. E, mal vagava uma das casinhas, ou um quarto, um canto onde coubesse um colchão, surgia uma nuvem de pretendentes a disputá-los.
E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco. (AZEVEDO, 1997, p. 6-7)
Observamos que, além daquelas duas figuras de linguagem, o autor também utilizou o recurso da sinestesia, por evocar os sentidos do leitor. Em “A negra, imóvel, cercada de escamas e tripas de peixe“(p.118), os alunos viram uma tentativa de provocar a memória olfativa dos leitores.
Assim como no Realismo, o texto naturalista contém uma sequência de descrições muito precisas. As duas turmas observaram que, no movimento literário anterior, havia uma preferência por abordar os dilemas psicológicos dos personagens. No Naturalismo, descreve-se tudo: os personagens e seu caráter, os ambientes e seus cheiros.
Sempre em mangas de camisa, sem domingo nem dia santo, não perdendo nunca a ocasião de assenhorear-se do alheio, deixando de pagar todas as vezes que podia e nunca deixando de receber, enganando os fregueses, roubando nos pesos e nas medidas, comprando por dez réis de mel coado o que os escravos furtavam da casa dos seus senhores, apertando cada vez mais as próprias despesas, empilhando privações sobre privações, trabalhando e mais a amiga como uma junta de bois, João Romão veio afinal a comprar uma boa parte da bela pedreira, que ele, todos os dias, ao cair da tarde, assentando um instante à porta da venda, contemplava de longe com um resignado olhar de cobiça. (IDEM, 1997, p. 2-3)
Uma das turmas observou, ainda, que a escrava fugida fora nomeada em todos os momentos da trama; no entanto, no momento em que – na cena final – seu antigo dono surge, o narrador passa a chamá-la de “a negra”, o que pode ser uma alusão ao modo como os senhores referiam-se aos seus escravos.
A negra, imóvel, cercada de escamas e tripas de peixe, com uma das mãos espalmadas no chão e com a outra segurando a faca de cozinha, olhou aterrada para eles, sem pestanejar. Os polícias, vendo que ela se não despachava, desembainharam os sabres. (IDEM, p. 118)
Uma das características naturalistas observadas na obra foi a animalização dos personagens: “o homem é um animal, presa de forças fatais e superiores e impulsionado pela fisiologia em igualdade de proporções que pelo espírito ou a razão” (COUTINHO, 1995, p. 189).
Bertoleza, então, erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recuou de um salto e, antes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de lado a lado. E depois emborcou para frente, rugindo e esfocinhando moribunda numa lameira de sangue. (IDEM, p. 118)
Isso resulta da influência científica do final do século XIX. Os escritores do período foram influenciados por duas importantes teorias daquele período: o Determinismo e o Positivismo. A primeira – criada por Hyppolite Taine – compreendia que a obra de arte devia seguir os princípios de raça, meio e hereditariedade para a construção do texto. A segunda – elaborada por Augusto Comte – visava a aplicar os princípios de observação, experimentação na observação dos fenômenos sociais. Veja o trecho transcrito abaixo:
Ele propôs-lhe morarem juntos e ela concordou de braços abertos, feliz em meter-se de novo com um português, porque, como toda a cafuza, Bertoleza não queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o homem numa raça superior à sua. (AZEVEDO, 1997, p. 1.)
2º momento: Ainda há cortiços?
Eu perguntei aos alunos se, antes da leitura da obra de Aluísio Azevedo, eles haviam ouvido falar ou conheciam algum cortiço. A maioria respondeu negativamente. Em seguida, apresentei aos alunos os dois documentários abaixo. A fim de que a atividade não se tornasse cansativa, fizemos um pequeno debate entre os dois. Pedi aos alunos que destacassem o trecho que lhes chamara mais atenção e estabelecessem uma relação entre os vídeos e o texto naturalista.
Primeiro documentário: Cortiços: o espelho da miséria.
Duração: 21 minutos.
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Em Cortiços: espelho da miséria, há a participação de moradores dos cortiços em cinco bairros da capital paulista, arquitetos, urbanistas, uma psicóloga e um representante da Secretaria de Urbanismo de São Paulo. Os alunos destacaram o ambiente degradado dos cortiços mostrados: a falta de higiene, o descaso dos proprietários e do poder público, a tristeza de seus moradores.
Segundo documentário: Morada invisível: o viver em cortiços.
Duração: 22 min.
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Neste documentário, há apenas moradores e o roteiro destaca as relações entre vizinhos e o tempo que cada um dos participantes mora nos cortiços. Assim como no anterior, os alunos mostraram-se impressionados com as condições de higiene. Cabe ressaltar que as duas turmas são alunas de um curso técnico em controle ambiental.
Para ler sobre as principais características do movimento literário, acesse o link Naturalismo.
Referências:
AZEVEDO, A. O cortiço. São Paulo: Ática, 1997. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1723>. Acesso em: 12 out 2016.
COUTINHO, A. Introdução à literatura no Brasil.16. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.