“Estão assassinando a língua portuguesa!” Atire a primeira gramática quem nunca leu essa frase em algum grupo de rede social. Aparentemente, há uma liga de “defensores da língua portuguesa”, que se desesperam a cada vez que alguém ousa usar alguma palavra estrangeira. Apesar do tom humorístico do início do parágrafo, a questão aqui é muito séria: se a educação linguística brasileira fosse além da “decoreba” de regras gramaticais, ninguém pensaria que a língua está sob algum tipo de ameaça. Aprenderíamos, desde o Ensino Fundamental, que tudo isso é um processo natural em qualquer língua!
Alguns dias atrás, li diversos comentários acerca do uso de palavras estrangeiras em situações para as quais temos correspondentes em português. Questionava-se por que, sendo o nosso idioma tão rico, usamos tantas palavras de língua inglesa. A questão não é assim tão simples: ele é rico justamente porque, ao longo de sua história, pegou emprestadas diversas palavras de outras línguas.
Em minhas aulas para o Ensino Médio, explico aos meus alunos que o vocabulário da nossa língua foi formado a partir de, pelo menos, três fontes: origem latina, origem estrangeira e a origem vernácula, de criação interna. A origem latina é aquela que nos deu palavras como “delicado” e “delgado” (ambas do Latim delicatus); já a vernácula, é aquela por meio da qual as palavras são formadas dentro do próprio idioma (É o caso, por exemplo, de “guarda-chuva”, “infeliz”, “desconhecimento”.
A origem estrangeira corresponde a cinco grupos:
I) as palavras de origem da Península Ibérica: lousa, arroio, bezerro, carrasco;
II) as originárias das línguas dos conquistadores da Península Ibérica, após o domínio romano, incluindo aquelas que são de origem germânica e árabe: arauto, esgrima, guerra, marechal, norte, sul, leste, oeste, Adolfo, Frederico, Rodolfo;
III) as palavras surgidas durante a Idade Média, resultado de relações comerciais entre Portugal e outros povos (França, Espanha, Itália…): frota, frete, flecha, sargento, franja, framboesa.
IV) palavras introduzidas na língua portuguesa após o século XV, por meio dos descobrimentos e conquistas ultramarinas (elementos africanos, americanos e asiáticos): banana, zebra, batuque, catapora, guri, Ubirajara, Moema;
V) palavras provenientes de línguas europeias , introduzidas pelos meios de comunicação, relações comerciais e literárias , a partir do século XVII: castanhola, pandeiro, macarrão, restaurante, vitrine.
Uma vez que consigamos compreender que esse processo de formação do léxico é algo natural, precisamos, então, pensar por que temos tantas palavras inglesas incorporadas ao nosso vocabulário sem nenhuma alteração em sua estrutura. Ora, vimos acima que as relações comerciais interferem na formação do vocabulário. Além disso, não é difícil perceber que a internet e as redes sociais popularizaram termos que eram usados em contextos muito específicos.
Quem, por exemplo, ao usar o computador diz que “irá apagar um arquivo”? Provavelmente, dizemos “deletar o arquivo”. E o que é “deletar”? Nada mais é do que um neologismo resultante de um empréstimo linguístico. “Post” e “publicação” são usados no mesmo contexto comunicativo? Nem sempre… Ninguém lerá a primeira palavra e pensará em uma revista vendida em banca de jornal, mas o termo “publicação” pode ser usado em referência a um jornal, a uma revista, a um gibi, a um artigo científico. Não adianta reclamar, pois é o contexto que define o uso.
“Nosso léxico é certamente um mosaico no qual entraram, em tempos diferentes, peças de origens distintas, devido às diversas motivações, que se encaixam formando uma imagem possível da língua que falamos. […] Porém, não pense que a evolução do léxico acabou, ou que acaba… Enquanto houver falantes, o léxico será renovado, seja por conta de “gírias”, ou de novos usos para palavras já existentes. […] No português brasileiro, o cruzamento vocabular é uma das estratégias por trás do surgimento de novas palavras que envolve a criatividade dos falantes”. (BASSO, 2019, p, 72)
Adianta reclamar em rede social? Não! O que funcionaria muito bem seria um programa de ensino de língua portuguesa que contemplasse, verdadeiramente, a reflexão sobre a história da língua, os seus processos de formação e os seus usos. É como eu sempre digo: “decoreba” de regra gramatical não faz de ninguém um especialista em língua. Prova disso é a infinidade de “consultórios gramaticais” espalhados pelas redes sociais.
Leia no blog:
Filologia, história e língua: olhares sobre o português medieval
ENEM 2014 – Questão comentada: empréstimos linguísticos
Dicas de livros:
BASSO, Renato Miguel. Descrição do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2019. (Compre aqui)
FERREIRA, Maria Aparecida S. de Camargo. Estrutura e formação de palavras: teoria e prática. São Paulo: Atual, 1988.
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