Língua Portuguesa Linguística

Erro de ortografia não é erro de português!

Algum tempo atrás, enquanto fazia uma pesquisa, encontrei diversos sites que apresentavam uma lista com os “10 erros de português / de gramática mais cometidos pelos brasileiros”. Em alguns resultados, apareceu também a expressão “erro crasso”, para ser ainda mais impactante. O mais interessante é que, apesar do título igual, as listas continham “erros” diferentes em cada um dos sites. Há muitos equívocos nesse tipo de chamariz, mas um deles chamou mais a minha atenção: a inclusão dos erros de ortografia.

O que é ortografia?

Entende-se por ortografia o “conjunto de normas para a grafia das palavras de uma língua” (BORBA, 2011). Esse conjunto de normas pode mudar com o tempo e isso ocorre por força de lei. Parece uma afirmação óbvia, mas é sempre bom reforçar que a ortografia oficial de 2020 não é a mesma de 1811.

A ortografia da língua portuguesa mudou muito ao longo de sua história. Antes da reforma ortográfica de 1943, escrevia-se athmosphera (atmosfera), hyperbole (hipérbole), mez (mês), portuguez (português). A reforma de 1945 alterou a grafia de palavras como êlegêlocôcosôbre (ele, gelo, coco, sobre). O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa estabelecido pelos países lusófonos em 1990 e implementado definitivamente em 2016 promoveu outras mudanças, que passaram pela abolição do trema, pelo retorno de algumas letras ao nosso alfabeto, pela alteração de regras de acentuação e do uso do hífen.

Confira algumas mudanças definidas no Acordo 1990:

“A ortografia foi um artifício inventado pelos seres humanos para poder registrar por mais tempo as coisas que eram ditas. A ortografia oficial, em todos os países, é uma decisão política, é uma lei, um decreto assinado pelos que tomam as decisões em nível nacional.” (BAGNO, 2001, p. 28)

O que é Gramática?

O que leva determinados sites a listar erro de ortografia como “erro de português” ou “erro de gramática”? É a falta de conhecimento do que, de fato, significa a palavra gramática. Para o profissional de Letras e nem sempre essas listas são feitas por alguém da área esta palavra é um termo técnico com, pelo menos, cinco acepções. Antunes (2007) apresenta-nos cada uma delas:

1) Conjunto de regras que definem o funcionamento de uma língua “Saber intuitivo que todo falante tem de sua própria língua, a qual tem sido chamada de gramática internalizada” (p. 25). Aqui estamos nos referindo às regras de uso da língua. Todo falante de uma língua conhece a sua gramática. Uma pessoa que tem, por exemplo, a língua portuguesa como língua materna¹ conhece a sua gramática.

O professor não pode achar normal quando o seu aluno se apresenta dizendo “Eu não sei português, professora.” Que tipo de ensino de língua ele vivenciou a ponto de proferir uma frase dessa?

Este é um ponto que sempre debato com meus alunos no primeiro dia do primeiro ano do Ensino Médio: não existe “Não sei português” para quem ouve esta língua desde o “ventre da mãe”.

Se uma criança diz “minhas colegas e meus colegos”, “um algodão” e “um algodinho”, é porque já domina as regras morfossintáticas de indicação do masculino e do feminino, bem como as regras de indicação do aumentativo e do diminutivo em português. Ou seja, já sabe esses pontos de gramática. […] Mas existe a ideia simplista e ingênua que apenas a norma culta segue uma gramática. […] Ora, toda língua em qualquer condição de uso é regulada por uma gramática. (ANTUNES, 2007, p. 27)

Assista ao vídeo no final deste texto; nele, o professor Marcos Bagno fala da agressão implícita na frase “O meu aluno não sabe português”.

2) Conjunto de normas que regulam o uso da norma culta É essa acepção que está implícita na expressão (equivocada) “erro de gramática”, que serve como isca em situações como a descrita no início deste texto. Antunes (2007) define como os “usos considerados aceitáveis na ótica da língua prestigiada socialmente […] Tais definições não são feitas por razões propriamente linguísticas. São feitas por razões históricas, por convenções sociais…” (p. 30).

3) Perspectiva de estudos dos fatos da linguagem O termo gramática indica, ainda, uma perspectiva científica de estudos de linguagem: gramática estruturalista, gramática gerativa, gramática funcionalista, gramática tradicional.

4) Disciplina de estudo Em muitas instituições educacionais, Gramática (ou Língua Portuguesa), Redação e Literatura são disciplinas separadas, como se fosse possível escrever e ler sem pensar sobre a língua. O que se vê, como resultado, é um aluno que decora nomenclatura gramatical, mas não produz um texto coeso e não compreende o que lê. Esta acepção está relacionada à ideia de norma padrão.

5) Compêndio descritivo-normativo sobre a língua Uma das acepções mais conhecidas é aquela em que o termo gramática é usado para identificar um livro cuja abordagem sobre a língua é mais descritiva ou mais prescritiva.

No primeiro caso, estão aquelas publicações que analisam elementos estruturais linguísticos, descrevendo-os ou analisando suas especificidades. São exemplos de gramáticas descritivas a Nova gramática do português brasileiro, de Ataliba de Castilho Editora Contexto) e a Gramática pedagógica do português brasileiro, de Marcos Bagno (Editora Parábola).

No segundo caso, estão aquelas cujo objetivo é a prescrição de modelo linguístico, a que chamamos de norma padrão². Um título bastante conhecido é a Moderna gramática portuguesa, de Evanildo Bechara (Editora Nova Fronteira).

Erro de português: de onde vem essa ideia?

O que seria “erro de português”? Poderíamos assim rotular apenas estruturas não previstas na gramática da língua; por exemplo, em língua portuguesa, o artigo aparece antes do substantivo (o livro, a mesa, o menino). Nesse sentido, “erro de português” seria uma estrutura como “livro o”, “mesa a”. Assista ao vídeo e veja de onde vem essa ideia equivocada de “erro” e “acerto” em línguas.

Se não conseguir visualizar o player, assista no YouTube.

É isso, meus queridos, erro de ortografia não é erro de português, e erro de português não existe!

Nota:

¹Língua materna é a primeira língua adquirida pelo indivíduo. Em Linguística, também é representada pela expressão L1, em oposição a L2, que é qualquer língua aprendida após a aquisição da língua materna.

² Para os estudos sobre norma padrão e norma culta, sugiro a leitura de Linguística da norma, organizado pelo professor Marcos Bagno e publicado pelas Edições Loyola.

Referência:

ANTUNES, Irandé. Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras no caminho. São Paulo: Parábola, 2007.

BAGNO, Marcos. Português ou brasileiro? : um convite à pesquisa. São Paulo: Parábola, 2001.

BIBLIOTECA NACIONAL DIGITAL. Idade D’Ouro do Brazil. Disponível em https://bndigital.bn.gov.br/artigos/idade-douro-do-brazil/#:~:text=Segundo%20peri%C3%B3dico%20publicado%20no%20Brasil,Brito%2C%20o%20conde%20dos%20Arcos. . Acesso em 06 jul 2020.

BORBA, Francisco S. Dicionário UNESP do português contemporâneo. Curitiba: Piá, 2011.

3 Comments

  1. Nois fais, nois vai. Eu di pra ele. Claro que é preciso respeitar a cultura, o que a criança traz de casa. Mas existe a norma culta. Bagunçando o próprio idioma dá margem para a entrada de outros idiomas. Causa política também. É importante preservar o seu idioma ou sua língua. Mesmo que os tempos acrescentem palavras novas tornando muitas palavras obsoletas. O que não pode acontecer no ponto de vista psicológico e social é discriminar a alguém porque “fala errado”. Qual a linguagem de comunicação do seu grupo “mano” ? Com uma ou duas aspas?

    1. Não sei se consegui entender seu comentário. O que você quis dizer com “bagunçando o idioma dá margem para entrada de outros idiomas”? Os empréstimos linguísticos fazem parte da história de TODAS as línguas naturais.

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Andréa Motta

Professora de Língua Portuguesa , Literatura e Formação do Leitor Literário no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro.

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