Hoje, 10 de dezembro, seria o aniversário de Clarice Lispector. Em uma infeliz coincidência, ontem , 9 de dezembro, foi aniversário de sua morte. Lembrar disso, trouxe-me um sentimento estranho: alguém íntimo deveria ser celebrado! Não lembro do meu primeiro contato com a obra de Clarice; não faço ideia de qual foi o primeiro livro que li. Recordo-me apenas de ter ficado angustiada quando – na época da pós-graduação em Teoria Literária – precisei escrever meu trabalho de conclusão de uma das disciplinas (Na outra, escrevi sobre Tereza Batista, de Jorge Amado). Escolhi Clarice como tema: A paixão segundo G.H. Eu, no entanto, fiquei inquieta com aquilo e troquei de livro: A hora da estrela. Fiquei encantada; senti dó e ódio de Macabéa! Havia descoberto o livro da minha vida!
Em A hora da Estrela, temos dois autores: Clarice e Rodrigo S.M, autor fictício, que irá criar e contar a história de Macabéa. Eis aí o paradoxo! Clarice é a autora de Rodrigo, que é autor de Macabéa, Olímpico e Glória: “A história vai (…) vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro”. (p. 27). Rodrigo chama minha atenção a cada leitura: aquele S.M. lembra-me algo de dicionário: “substantivo masculino”. Será que ele quer marcar seu espaço masculino entre as tantas personagens femininas de Lispector, “porque escritora mulher pode lacrimejar piegas” (p. 28)?
Macabéa, a personagem feminina dessa narrativa, tem algo em comum com as outras mulheres criadas por Clarice: ela vive um processo de intenso sofrimento. A nordestina só conhece dor, angústia e medo; Olímpico – algo parecido com um namorado – é ambíguo. Ele pode ser fonte de prazer e sofrimento; tanto acaricia, quanto a humilha.
Ele tem a mesma origem, a mesma vida seca, mas se acha superior por ter um dente de ouro: “Este dente lhe dava posição na vida” (p. 62). O sujeito sequer gosta dela: acha-a feia, burrinha, esquisita, uma perda de tempo. Glória – amiga de Macabéa – é o seu oposto; pelo menos, é assim que Olímpico a vê: carioca da gema, loura (falsificada, mas loura, como Marilyn Monroe), cheia de curvas. Macabéa é, então, trocada, mas não reage! O leitor de Clarice volta, pois, às primeiras páginas do livro e relê um dos treze subtítulos: “Ela não sabe gritar”.
Com tanto sofrimento, tanto despreparo para a vida, por que a pobre Maca é uma estrela? Em que consiste seu momento de sucesso? Felicidade para ela é um conceito muito abstrato… A moça é um fracasso na vida profissional e no amor, mas uma ida à cartomante lhe dá uma esperança: um homem, um estrangeiro em seu caminho. E Macabéa, em um impulso que não lhe é característico, sai da casa aos tropeços. Rodrigo S.M. diz que a moça “estava grávida do futuro”.
E enorme como um transatlântico, o Mercedes amarelo pegou-a. […] (p.98)
Olímpico tinha razão: ela só sabia mesmo era chover. Os finos fios de água gelada aos poucos empapavam-lhe a roupa e isso não era confortável. (p. 100)
O narrador – Rodrigo S.M – assume-se como um traidor. “Até tu, Brutus?”, ele se pergunta. No único instante em que a moça tinha uma promessa de felicidade, seu autor decide dar fim a tudo?
Nádia Batella Gotlib – a principal biógrafa de Lispector – considera Clarice uma narradora sedutora (2010), mas alerta para o perigo implícito na sua obra: os contos da autora questionam padrões de comportamento, de posturas sociais, como podemos observar na coletânea Laços de família.
Meus alunos do Ensino Médio leram os Laços. São adolescentes e muitos disseram ter sentido um certo incômodo ao conhecer as personagens; para alguns, era sempre a mesma mulher retratada: Laura e Ana seriam o retrato da dona de casa da década de 1950? Todas têm a mesma angústia, a mesma preocupação com casa, filhos, maridos? Todas postas na mesma zona de conforto de onde são arrancadas por algo que lhes parece incomum?
Clarice teve algumas de suas obras adaptadas para o cinema e televisão; é o caso, por exemplo, de A hora da estrela e Felicidade Clandestina. Recentemente, a Rede Globo adaptou os textos publicados pela autora na coluna Correio Feminino no período de 1959 a fevereiro de 1961. A escritora teve, ainda, sua obra analisada e discutida inúmeras vezes no meio acadêmico, mas é especialmente interessante a análise feita por seu filho Paulo Gurgel Valente, em entrevista gravada para o Instituto Moreira Sales.
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Leia mais no blog:
Literatura e cinema: A hora da Estrela
Referências bibliográficas:
GOTLIB, N.B. A paixão segundo Clarice. In: Revista Carta na Escola, n. 44, mar. 2010, p. 39-42
LISPECTOR, C. A hora da estrela. 23.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
*Editado em 10/12/2016.