A pergunta do título parece remeter a uma discussão velha, tola ─ e ultrapassada ─ mas o que cinco minutos de observação em uma rede social me fez concluir é que ainda repetimos o senso comum de que existe um sotaque certo e um errado. Deu-me a sensação de que só as outras pessoas “têm sotaque”, nós não…
As redes sociais são ótimas para coletar dados acerca do que as pessoas de outras áreas de conhecimento pensam sobre o funcionamento das línguas. Um dos comentários que observei referia-se à pronúncia de uma famosa jornalista em cuja fala se ouve “seixta”, o que foi rapidamente defendido por alguém como Carioquês! Uma outra pessoa lembrou que existe uma prática na imprensa de mandar o jornalista ao fonoaudiólogo para “perder o sotaque”.
A primeira coisa a se esclarecer é a definição de sotaque. Popularmente, costuma-se dizer que é a pronúncia que permite reconhecer, entre outras características, a origem geográfica de um indivíduo; é ele que nos faz identificar o mineiro, o paulista, o fluminense, o potiguar… E por que cada um deles pronuncia a língua portuguesa de uma maneira? Porque cada região do Brasil sofreu influências linguísticas diferentes!
Todo mundo tem sotaque!
Antes que alguém pergunte por que, então, não falamos como os portugueses, esclareço que nem em Portugal existe uma pronúncia uniforme. Não estamos lá e essa homogeneidade não é possível! Além disso, a língua oral passa por mudanças muito mais rapidamente do que a língua escrita, que é dependente de leis e decretos (Um exemplo disso é o Acordo Ortográfico.).
Outro fator importantíssimo a esclarecer: a escrita é uma tentativa de reproduzir em sinais gráficos aquilo que está presente na fala e não o contrário! As primeiras formas escritas só apareceram 3.500 anos antes de Cristo; logo, não se pode julgar o que é “certo” ou “errado” em pronúncia usando a língua escrita como modelo; isso seria desconsiderar totalmente que são modalidades produzidas em contextos distintos!
O professor Ataliba de Castilho (2010) aponta que, “em muitas variedades do português brasileiro ocorre uma ditongação das vogais tônicas finais” (p. 317), algo tão comum que não é tratado como um traço regional. É o que acontece em palavras como “fez”, “paz”, “rapaz”, em que ouvimos algo semelhante a [i] na sílaba final. O pesquisador destaca que, na variedade carioca, esse processo avançou e essa pronúncia já se verifica em palavras não oxítonas em que a sílaba tônica “seja travada por [s] ou [z]”. É o que acontece, por exemplo, em “asma” e “festa”. Pronto! Está explicado: é por isso que “sexta-feira” virou “seixta” na fala da jornalista carioca.
Seria possível um “sotaque limpo”?
Como citei anteriormente, sabemos que algumas emissoras enviam seus jornalistas ao fonoaudiólogo para “consertar” o jeito de dizer as palavras; ou seja: fabricar um sotaque que não corresponda a nenhuma região específica do país! De onde, então, vem o sotaque fabricado das emissoras? Será que foi “inventado” com base em alguma pesquisa de Linguagem? De acordo com Conrado Mendes (2009), quem resolveu padronizar o “sotaque” dos jornalistas globais, na década de 1970, foi uma fonoaudióloga contratada pela emissora com base na sua compreensão dos Anais do Congresso de Filologia de 1956. Em um dos artigos apresentados, sugeria-se que o falar carioca fosse usado como padrão para as apresentações teatrais, mas não havia a descrição de critérios científicos rígidos que justificassem a escolha. Decidiu-se, ainda, que os jornalistas deveriam ser treinados para evitar a pronúncia de certos fonemas típicos do falar carioca. De acordo com as restrições da emissora, os “esses” – [S] – não poderiam ser muito sibilantes (o nosso “chiado” carioca) e os “erres” – [R] – não poderiam ser “muito arranhados” (O que será isso?). Qual o critério para essa determinação global? Nenhum! Parece ter sido apenas o julgamento individual – e nada científico – de sotaque feio ou bonito!
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Leia também no blog:
Erro de português. Tem certeza? – Sobre a pronúncia da desinência de infinitivo.
Obs 1.: No vídeo que acompanha este texto, as pesquisadoras Suzana Alice Marcelino da Silva Cardoso e Jacyra Andrade Mota (Universidade Federal da Bahia) explicam como o Atlas Linguístico foi desenvolvido e explicam por que não existe um sotaque mais importante do que outro. Se não conseguir visualizar o player, clique AQUI.
Obs.2: Palavras oxítonas são aquelas em que a sílaba tônica é a última. Por exemplo: depôs (verbo depor). Sobre tonicidade, leia o texto Que negócio é esse de “gritar” a palavra para descobrir a sílaba tônica?
Referência:
CASTILHO, A. Vocalismo brasileiro. Gramática do português brasileiro. São Paulo: Contexto, 2010. p. 316-322.
MENDES, C.M. Semiotizando dados fonético-acústicos: o sentido da expressão da fala no Jornal Nacional. Texto Livre: linguagem e tecnologia. v.2, n.2. Disponível em: <http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/textolivre/article/view/49/586>. Acesso em 18 mai 2015.
Não existe sotaque limpo nem sotaque sujo. O sotaque jornalístico é neutro. Isso evita que um sotaque muito marcante ou regionalizado torne-se foco ao invés das notícias transmitidas. O sotaque neutro permite que as informações sejam passadas com maior clareza e funcionalidade, sem regionalismos. Isso é indispensável, especialmente em programas cuja audiência é nacional. Assim, cria-se um sotaque mais “brasileiro geral”, sem enfatizar qualquer região específica. Você realmente acha que isso não melhora a comunicação com uma audiência nacional?
Agora, pessoalizando um pouco minha opinião, esse texto reflete a mentalidade do brasileiro. Conheço gente que nunca sequer morou em uma cidade diferente no Brasil, mas mora em outro país. A pessoa acha que o Brasil gira em torno da região que ela nasceu ou viveu por muito tempo. Isso cria uma divisão interna terrível. Não é à toa que muitas pessoas aqui mal conseguem morar em uma cidade diferente. Muitas preferem ir direto para outros países, mas não conhecem o próprio país.
Não importa o sotaque, seja ele neutro ou não. Somos todos brasileiros. Cada região tem sua beleza, mas nenhuma, apesar de toda diversidade, é mais importante que o Brasil.
Sejamos menos regionalistas. Dane-se se um sotaque identifica um suposto carioca (a pessoa pode nem sequer ser carioca), dane-se se um jornalista paulista quer falar com sotaque do Amapá e vice-versa. O importante é que as pessoas tenham consciência de que sua região não é um território histórico, cultural e econômico separado do Brasil, mas integrante dele.