O analfabeto não é então uma pessoa que vive à margem da sociedade, um homem marginal, mas apenas um representante dos extratos dominados da sociedade, em oposição consciente ou inconsciente àqueles que, no interior da estrutura, tratam-no como coisa. (…) Quando se ensina os homens a ler e a escrever, não se trata de um assunto transcendente de ba, be, bi, bo, bu, da memorização de uma palavra alienada, mas de uma difícil aprendizagem para “nomear” o mundo.
(Paulo Freire. Conscientização)
Há algum tempo, quando voltava do trabalho, fui abordada por uma senhora de aproximadamente sessenta anos. Trajava roupas simples: uma saia florida pouco abaixo do joelho, uma blusa de malha verde, lenço no cabelo, uma bolsa grande de tecido.
– Filha, você pode me ajudar?
– Sim senhora, qual o problema?
– É que preciso pegar um ônibus verdinho…
– Ônibus verdinho?? Mas pra onde a senhora vai?
– Méier, eu vou pro Méier… Me disseram que tenho que pegar um verdinho – e ela disse exatamente desse jeito…
Fiquei pensando quem teria sido a pessoa inteligente que dera a indicação àquela senhora. Eu moro em um bairro servido por umas trinta linhas de ônibus e o que não falta é ônibus verde. Quando surgiu o primeiro ônibus verde, ela fez sinal.
– Não, moça! – Eu gritei – Não é esse, não!
– É tão difícil pegar ônibus sem saber ler…. Você sabe qual eu tenho que pegar?
– Sim: é o Caxias – Méier! Eu espero com a senhora.
E, enquanto esperávamos, ela me contou parte de sua história: viera novinha para o Rio de Janeiro; novinha e analfabeta (palavras dela!); fora trabalhar em uma casa como doméstica e, impedida pela patroa, nunca aprendeu a ler. Segundo ela, se a patroa a enganava nunca soube, “porque analfabeto não entende nada, filha”. Deixou o emprego de doméstica para trabalhar como faxineira em uma empresa. Casou, teve filhos, educou-os com o salário de faxineira, formou-os, mas não aprendeu a ler. Ficou viúva, mas não aprendeu a ler.
O ônibus verde apareceu, fiz sinal e ela entrou: -– Obrigada! Deus lhe abençoe!
Essa senhora me fez lembrar a época em que alfabetizei idosos; a maioria das senhoras me dizia que o “pai não deixara”, “ o marido não deixara”. Surpreendente foi uma que me disse a seguinte frase: “Meu marido morreu! Agora eu é que vou viver e vou aprender a ler!”. O educador Paulo Freire, em sua obra Conscientização, chamava a atenção para o tratamento dado aos analfabetos e o quão distantes eles estão da liberdade cultural.
Hoje, 15 de outubro, comemora-se o dia do professor, criado em um decreto de 14 de outubro de 1963. Ao longo da história do Brasil, o que se viu foi a crescente desvalorização do magistério, o que eu particularmente entendo como um reflexo daquilo que se entende por valorização no Brasil. Ninguém decide ser professor por questões financeiras, porque isso não dá dinheiro; ultimamente, nem “status”. Nas décadas de 1940 e 1950, ser professor era ser visto com admiração; hoje, ouve-se um desdenhoso “ah tá…” quando alguém diz “eu sou professor”, como se junto com esse “ah tá…” viesse um “coitado, coitada, não conseguiu ser outra coisa na vida!”. De fato! Eu NUNCA pensei ser outra coisa e, como NUNCA pedi a opinião de ninguém a respeito, fiz o que quis.
Comecei a dar aulas com 17 anos; um mês depois da formatura eu já tinha emprego (uma turminha de maternal; crianças entre 3 e 4 anos). Foi um fiasco, um desastre total! Eu já havia enfrentado os pequenos antes, por causa dos estágios e do emprego que minha prima arranjara pra mim na escola onde ela trabalhava, mas naquela ocasião eu era assistente. Dessa vez, eu estava sozinha; era a professora, a “Tia Andréa”! Fui aos prantos para a sala da direção quando a primeira criança começou a chorar com saudade de casa, e a diretora teve de consolar nós duas. Um horror, mas não desisti! Pelo menos duas dessas crianças, eu ainda vejo; estão enormes, umas mocinhas… Depois enveredei pelas Letras e não saí mais. Vieram as crianças mais velhas, os adolescentes, os idosos, os adolescentes de novo e os adultos… Continuo fazendo o que eu quero!
Nota: Publiquei esse mesmo texto em 15 de outubro de 2008, no meu outro blog (Hoje, desativado). Era, dentre todos os meus textos, o favorito de meu pai!
Quero ser professora, sonho com isso, mas não possuo o apoio de ninguém da família, apenas de alguns poucos amigos. Sempre quando digo a profissão que vou seguir ouço um lamento e vejo caretas. Mas vou seguir esse caminho dos meus sonhos.
Karla, se você quer mesmo ser professora, estude bastante e siga a sua vocação!
Obrigada por visitar o blog!
Lindo seu texto Andréa! Assim como seu pai, amei!
Obrigada, Ricardo, pela visita e pelo comentário gentil!
Parbéns professora. O mundo precisa de pessoas determinadas assim.
Muito obrigada, Chico.