A canção do africano
Castro Alves
Lá na úmida senzala,
Sentado na estreita sala,
Junto ao braseiro, no chão,
Entoa o escravo o seu canto,
E ao cantar correm-lhe em pranto
Saudades do seu torrão …
De um lado, uma negra escrava
Os olhos no filho crava,
Que tem no colo a embalar…
E à meia voz lá responde
Ao canto, e o filhinho esconde,
Talvez pra não o escutar!
“Minha terra é lá bem longe,
Das bandas de onde o sol vem;
Esta terra é mais bonita,
Mas à outra eu quero bem!
“O sol faz lá tudo em fogo,
Faz em brasa toda a areia;
Ninguém sabe como é belo
Ver de tarde a papa-ceia!
“Aquelas terras tão grandes,
Tão compridas como o mar,
Com suas poucas palmeiras
Dão vontade de pensar …
“Lá todos vivem felizes,
Todos dançam no terreiro;
A gente lá não se vende
Como aqui, só por dinheiro”.
O escravo calou a fala,
Porque na úmida sala
O fogo estava a apagar;
E a escrava acabou seu canto,
Pra não acordar com o pranto
O seu filhinho a sonhar!
……………………….
O escravo então foi deitar-se,
Pois tinha de levantar-se
Bem antes do sol nascer,
E se tardasse, coitado,
Teria de ser surrado,
Pois bastava escravo ser.
E a cativa desgraçada
Deita seu filho, calada,
E põe-se triste a beijá-lo,
Talvez temendo que o dono
Não viesse, em meio do sono,
De seus braços arrancá-lo!
ALVES, Castro. Os escravos. São Paulo: Martins, 1972.
Poema escrito em 1863. O tema é o africano exilado de sua terra e que tem de se encontrar nas terras brasileiras, ou seja, o poema mostra a solidão de um povo oprimido em uma terra estranha. Portanto, neste poema há a contradição entre a África da liberdade e a América da escravidão. E, uma das formas encontradas pelo cativo de não se perder de si mesmo, é entoar canções de sua terra natal. Neste poema o que há de mais interessante é o fato de o poeta dar voz ao escravo.
Este poema é composto por nove estrofes, sendo que as duas primeiras e as três últimas têm seis versos cada. As demais estrofes são quartetos. Percebe-se que justamente essas estrofes de quatro versos são cedidas à voz do africano cativo em terras brasileiras. São dezesseis versos nos quais uma suposta canção popular africana é — ainda que pelo filtro do poeta — cantada dentro de uma senzala, expondo o sentimento do cativo exilado.
Na primeira estrofe o poeta descortina a cena e a imagem primeira que deseja revelar: preso numa senzala um escravo africano sentado no chão junto a uma pequena chama sente saudade da África, sua terra natal, e começa chorar silenciosamente. As lágrimas escorem-lhe pelo rosto enquanto ele canta. O teor da canção ainda não é revelado neste primeiro momento, mas, pelo título do poema, o leitor já percebe vagamente que o homem está recordando seu passado na África.
Na estrofe seguinte o poeta amplia o campo de visão para o leitor e mostra que há mais pessoas naquele espaço da senzala: uma mulher, também escrava, com uma criança no colo, balançando-a nos braços para que essa dormisse. Quando a canção do homem chega até ela, a mulher contagia-se e também começa a cantar, mas muito baixo, pois não quer que o filho escute.
A terceira estrofe é a primeira oferecida pelo poeta ao escravo, para que este cante “livremente” toda a sua saudade da África. A canção começa explicando que vai falar de uma terra muito distante e que não chega a ser tão bela quanto as terras brasileiras — discretamente mostrando que o poeta romântico, por mais que queira, não consegue afastar-se de seu espírito ufanista. Mas, apesar de o canto do escravo não deixar de enaltecer a beleza da terra onde agora vive, sua saudade é da terra donde foi roubado.
Na estrofe seguinte, o africano continua cantando. Sua canção agora diz o quão o sol de sua terra é quente, mas não deixa de expor o quanto acha belo ver a estrela da tarde no céu da África, que ele chama de papa-ceia, que equivale ao planeta Vênus ou Estrela d’Alva.
O próximo quarteto mais uma vez é comparativo com o Brasil e a África, pois fala da vastidão de terras e observa que lá, diferentemente daqui, há poucas palmeiras. Assim, surge o pensamento do contraste entre uma natureza paradisíaca em oposição à escravidão.
Os últimos versos do poema dedicados à voz triste e, ao mesmo tempo, saudosa do homem exilado canta a felicidade que havia na sua terra natal, lembra das danças e, sobretudo, traz embutida em sua melodia a ideia de liberdade, que não existe, para ele, nesta terra. E, como ocorre nas demais estrofes cedidas à voz do escravo, neste também há a ideia de oposição antitética entre os dois primeiros versos e os dois últimos: aqui, se o quarteto começa falando do sonho bom que era a vida na terra africana, termina explicando que o povo de lá não é movido pelo dinheiro como o povo de cá, que é capaz até de vender pessoas por dinheiro.
Na próxima estrofe, o poeta retoma a voz. Ele conta que o escravo, neste instante, cala-se junto com o fogo que começava a apagar. A escrava que cantava em voz baixa a embalar o filho no colo, também fica em silêncio. Percebe-se que, mais que cantar, ela soluçava chorosa, triste pela saudade de sua terra. Assim, o que ela silencia não é a canção, mas o choro, para que seu filho não acorde.
A penúltima e a última estrofes mostram além daquela cena na senzala. Descortinam a realidade dura vivida pelos cativos, que se simplesmente acordassem tarde seriam surrados. O grande medo da mulher era saber que, até mesmo durante a noite, o seu “dono” poderia aparecer e tirar dela o filho. A criança, ao contrário dos adultos, ainda não tinha a consciência de que não passava de uma mercadoria naquele contexto de escravidão, naquele contexto no qual homens, mulheres e crianças de pele negra não tinham liberdade nem voz. E, justamente, o que há de mais significativo neste poema são os versos nos quais o poeta abre mão de sua voz e deixa os escravos cantarem a nostalgia pela distante terra natal. Claro que é uma tradução lírica do espírito do escravo exilado, mas o poeta capta muito bem esse instante de tristeza melancólica do outro. Além disso, neste poema fica muito claro o engajamento político de Castro Alves e o seu desejo pela abolição da escravidão.
Laurindo Stefanelli – Outubro/2013
Estão de parabéns, faço o 9° ano do ensino fundamental, e participarei de um recital de poemas sobre a escravidão, e este foi o poema que escolhi. Sua explicação me ajudou bastante, muito obrigado!!!
Lucilene Gomes Albino, ficamos muito agradecidos pela sua visita e pelo comentário gentil.
Obrigada,amei sua explicação! está de parabéns!!!!!
Excelente análise Laurindo. Me ajudou bastante na análise desse poema.
Obrigado, Luciene Siusa.
Adorei essa analise muitoooo detalhista!!!!!
Obrigado, Janekelli.
Gostei. Muito explicativa e fácil de entender essa análise.
Obrigado, Ana Paula.
Parabéns Laurindo pela bonita análise!
Obrigado, Edna Bastos.
Que linda canção quando cantada com a alma. Muito bela.
Obrigada, Paulo, pela visita e pelo comentário.