Carlos Drummond de Andrade iniciou a segunda geração do Modernismo brasileiro com a publicação da obra Alguma poesia em 1930. Uma das características do grupo é a abordagem de temas relacionados aos problemas sociais. Drummond nasceu na pequena cidade de Itabira (MG), mas fixou-se no Rio de Janeiro em 1934; passou, então, a ser um observador da vida na cidade que, naquela época, era a capital da República. Em 1984, Drummond publicou o poema Favelário Nacional, cujos trechos analisaremos neste artigo.
Em Favelário nacional, Drummond fez uma breve análise da situação das favelas brasileiras na década de 1960; seu ponto de partida é a grande enchente que atingiu o Rio de Janeiro em janeiro de 1966, o que já fora tema de uma crônica publicada em 14 de janeiro daquele ano no jornal Correio da Manhã. A imprensa da época relatou desabamentos nos morros da capital, Petrópolis e Niterói; famílias ficaram desabrigadas ou desalojadas e o governo iniciou um processo de reurbanização em alguns pontos da cidade. O poeta presta sua homenagem a favelas cariocas conhecidas, como Mangueira, Barreira do Vasco, Tucano, Rato Molhado e dedica o texto ao amigo Alceu de Amoroso Lima (cujo pseudônimo era Tristão de Athayde). O poema, dividido em 21 partes, segue a estética herdada da primeira geração modernista e é apresentado em estrofes irregulares e versos livres
1. Prosopopéia
(à memória de Alceu de Amoroso Lima, que me convidou a olhar para as favelas do Rio de Janeiro.)
Quem sou eu para te cantar, favela,
que cantas em mim e para ninguém a noite inteira de sexta
e a noite inteira de sábado
e nos desconheces, como igualmente não te conhecemos?
Sei apenas do teu mau cheiro: baixou em mim na viração,
direto, rápido, telegrama nasal
anunciando morte… melhor, tua vida.
Decoro teus nomes. Eles
jorram na enxurrada entre detritos
da grande chuva de janeiro de 1966
em noites e dias e pesadelos consecutivos.
Sinto,de lembrar, essas feridas descascadas na perna esquerda
chamadas Portão Vermelho, Tucano, Morro do Nheco,
Sacopã, Cabritos, Guararapes, Barreira do Vasco,
Catacumba catacumbal tonitroante no passado,
e vem logo Urubus e vem logo Esqueleto,
Tabajaras estronda os tambores de guerra,
Cantagalo e Pavão soberbos na miséria,
a suculenta Mangueira escorrendo caldo de samba,
Sacramento… Acorda, Caracol. Atenção, Pretos Forros!
O mundo pode acabar esta noite, não como nas Escrituras se estatui.
Vai desabar, grampiola por grampiola,
trapizonga por trapizonga,
tamanco, violão, trempe, carteira profissional, essas drogas todas,
esses tesouros teus, altas alfaias.
A primeira parte do poema é intitulada Prosopopéia – figura de linguagem caracterizada pela atribuição a seres inanimados de ações, qualidades ou sentimentos próprios do ser humano. Em Favelário nacional, o eu lírico trata a favela como seu principal interlocutor, o que pode ser observado pelo uso de uma apóstrofe (“Quem sou eu para te cantar, favela…” ) e pelo uso do pronome que identifica a segunda pessoa do discurso (“te cantar”, “teu mau cheiro”, “tua vida”, “teus nomes”, “esses tesouros teus“).
A segunda estrofe apresenta a inspiração para o texto (“grande chuva de janeiro de 1966”) e a visão inicialmente preconceituosa acerca das favelas (“Sinto, de lembrar, essas feridas descascadas”); a maneira de ver aqueles espaços será alterada ao longo do texto e o eu lírico fecha a primeira parte com uma pergunta retórica: “Vês que perdi o tom e a empáfia do começo?”
O pronome demonstrativo “esse” aponta para a lista de favelas sobre as quais o eu lírico falará ao longo do poema. O uso de outro demonstrativo situa o texto no presente em relação ao momento das enchentes (“O mundo pode acabar esta noite”). Como retrato social, a mesma estrofe mostra os prejuízos contados depois da enchente: “Vai desabar […] tamanco, violão, trempe, carteira profissional, essas drogas todas…”).
Em outra estrofe, surge a crítica à maneira como a favela e seus moradores são vistos por quem reside em outros pontos da cidade: “Medo: não de tua lâmina nem de teu revólver /nem de tua manha nem de teu olhar./Medo de que sintas como sou culpado /e culpados somos de pouca ou nenhuma irmandade.”
Em outros trechos, critica-se a demora no processo de urbanização das favelas e a remoção dos moradores. É o que se pode observar nas partes intituladas “Urbaniza-se? Remove-se?”e “Desfavelado”. Pode-se perceber, ainda, que o eu lírico inicial cede a vez para que o leitor “ouça” o morador da favela, que viu seu patrimônio ruir com as chuvas e é obrigado a deixar o local. O vocabulário utilizado permite ao leitor inferir a multiplicação de favelas e seus moradores (“gente brotando do chão”, “formigueiro infinito”).
Urbaniza-se? Remove-se?
Extingue-se a pau e fogo?
Que fazer com tanta gente
brotando do chão, formigas
de formigueiro infinito?
[…]
Me tiraram do meu morro
me tiraram do meu cômodo
me tiraram do meu ar
me botaram neste quarto
multiplicado por mil
quartos de casas iguais.
[…]
Me firmo, triste e chateado,
Desfavelado.
No subtítulo “Banquete”, o autor promove uma crítica irônica à pobreza extrema que obriga o cidadão a se alimentar de restos de comida: “Dia sim dia não, o caminhão/despeja 800 quilos de galinha podre […] Que morador resiste/à sensualidade de comer galinha azul?”.
Podemos dizer que a obra poética de Carlos Drummond de Andrade acompanha os fatos do dia a dia, refletem os problemas do mundo – uma característica da geração em que o poeta está inserido. Ao contrário de movimentos literários como o Arcadismo e o Romantismo, o Modernismo recusava a literatura como expressão de fuga de realidade e a utilizava como instrumento possível de modificação do mundo.
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