Em 13 de abril, publicamos o texto “Você sabe quais são os elementos da narrativa?“, em que explicamos quais são eles e em que gêneros textuais aparecem. No texto de hoje, veremos os diversos tipos de narrador que podem aparecer em um texto.
Lígia Leite (2004) afirma que o estudioso Norman Friedman, ao sistematizar a tipologia da narrativa, buscou responder às seguintes questões: quem conta a história? É uma narrativa em primeira ou terceira pessoa? Não há ninguém narrando? Qual é o ângulo de observação do narrador? Quais os canais de informação utilizados por ele? Qual a sua distância em relação ao leitor?
1. Narrador onisciente intruso – É aquele que narra à vontade. Conhece todos os aspectos da história narrada. Seus canais de comunicação são as suas palavras, pensamentos e percepções. Ele tece comentários sobre os costumes, a vida e a moral – temas que podem ter ou não relação com os fatos da narrativa em que está inserido. É o tipo de narrador que pode ser encontrado em obras de Machado de Assis.
Quando o testamento foi aberto, Rubião quase caiu para trás. Adivinhais por quê. Era nomeado herdeiro universal do testador. Não cinco, nem dez, nem vinte contos, mas tudo, o capital inteiro, especificados os bens, casas na Corte, uma em Barcelona, escravos, apólices, ações do Banco do Brasil e de outras instituições, jóias, dinheiro amoedado, livros, – tudo finalmente passara às mãos do Rubião, sem desvios, sem deixas a nenhuma pessoa, nem esmolas, nem dívidas. Uma só condição havia no testamento, a de guardar o herdeiro consigo o seu pobre cachorro Quincas Borba, nome que lhe deu por motivo da grande afeição que lhe tinha. (ASSIS, 1997,p. 27)
O trecho, extraído da obra Quincas Borba, de Machado de Assis, mostra-nos o momento em que Rubião descobre-se herdeiro de toda a fortuna de seu amigo Quincas Borba e também tudo do cão, que herdara o nome do dono. Podemos observar que há uma aproximação entre o narrador e o leitor, a quem o narrador trata na segunda pessoa do discurso: “Adivinhais por quê.”
É o tipo de narrador que também podemos encontrar em Feliz aniversário, de Clarice Lispector:
A família foi pouco a pouco chegando. Os que vieram de Olaria estavam muito bem vestidos porque a visita significava ao mesmo tempo um passeio a Copacabana. A nora de Olaria apareceu de azul marinho, com enfeites de paetês e um drapejado disfarçando a barriga sem cinta. O marido não veio por razões óbvias: não queria ver os irmãos. Mas mandara a mulher para que nem todos os laços fossem cortados – e esta vinha com o seu melhor vestido para mostrar que não precisava de nenhum deles. (LISPECTOR, 1995, p. 71)
Note que o narrador sabe as razões do personagens, o que é explicitado pelo uso de uma oração subordinada adverbial final: “para mostrar que não precisava de nenhum deles”.
Leite lembra, ainda, que esse tipo de narrador era muito comum no século XVIII e no seguinte, tendo saído de moda com as inovações narrativas do escritor francês Gustave Flaubert (o autor de Madame Bovary), o que teria sido, segundo a estudiosa, a “invenção do discurso indireto livre.
2. Narrador onisciente neutro – É o narrador que fala em 3ª pessoa. É ele quem caracteriza e explica as ações dos personagens. Difere do primeiro tipo de narrador pela ausência das intrusões e dos comentários sobre o comportamento dos personagens. É uma espécie de narrador comum no século XIX e permanece até o século XXI.
Até este último inverno, o humor da família Fournay estava excelente. Nada de desemprego, nada de brigas. O pai de Théo era diretor de pesquisas do Instituto Pasteur, tocava piano maravilhosamente e se revelava o melhor dos maridos. Melina tinha muita sorte: professora de ciências naturais do liceu George Sand, onde Théo estudava, tinha colegas animados e alunos comportados. As irmãs de Théo adoravam o irmão: a mais velha, Irène, começava o curso de economia, e Athèna, a mais moça, ia entrar na quinta série. Não fossem as meias misturadas no cesto de roupa suja e algumas batalhas campais para ver quem tirava a mesa, Théo não tinha problema com as irmãs. Mas era frágil, aí é que está. (CLEMENT, 1998, p.15)
No trecho extraído de A viagem de Théo, de Catherine Clement, o narrador é onisciente, mas não faz comentários sobre os pensamentos ou sentimentos dos personagens; ele apenas os apresenta.
3. “Eu” como testemunha – Narra em primeira pessoa e se apresenta como um personagem secundário da história narrada. Uma vez que também é personagem, sua visão sobre os fatos é bastante limitada. Leite (2004) diz que ele “narra da periferia dos acontecimentos, não consegue saber o que se passa na cabeça dos outros, apenas pode inferir, lançar hipóteses”. É o que faz o narrador do conto O jantar, de Clarice Lispector.
Ele entrou tarde no restaurante. Certamente ocupara-se até agora em grandes negócios. Poderia ter uns sessenta anos, era alto, corpulento. de cabelos brancos, sobrancelhas espessas e mãos potentes. Num dedo o anel de sua força. Sentou-se amplo e sólido.
Perdi-o de vista e enquanto comia observei de novo a mulher magra de chapéu. Ela ria com a boca cheia e rebrilhava os olhos escuros. (LISPECTOR, 1995, p. 97)
4. Narrador protagonista. Assim como no tipo anterior, desaparece a onisciência, uma vez que o narrador é também personagem. Nesse caso, ele é o personagem mais importante da história e todos os acontecimentos são narrados de acordo com o seu ponto de vista. Um narrador protagonista clássico é o Bentinho, de Dom Casmurro. O mesmo podemos observar em Feliz ano velho, de Marcelo Rubens Paiva, conto cujo tema é o acidente que deixou seu autor paralítico:
Subi numa pedra e gritei:
– Aí, Gregor, vou descobrir o tesouro que você escondeu aqui embaixo, seu milionário disfarçado.
Pulei com a pose do Tio Patinhas, bati a cabeça no chão e foi aí que ouvi a melodia: biiiiiiin.
Estava debaixo d’água, não mexia os braços nem as pernas, somente via a água barrenta e ouvia: biiiiiiin. Acabara toda a loucura, baixou o santo e me deu um estado total de lucidez: “estou morrendo afogado”. Mantive a calma, prendi a respiração sabendo que ia precisar dela para boiar e aguentar até que alguém percebesse e me tirasse dali. (PAIVA, 1984, p.9)
O foco narrativo é apenas um dos elementos constitutivos da narrativa. Aqui apresentamos uma das possíveis maneiras de analisar o ponto de vista segundo o qual uma narrativa pode ser contada.
Referências:
ASSIS, M. Quincas Borba. São Paulo: Globo, 1997.
CLEMENT, C. A viagem de Théo: romance das religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
LEITE, L.C.M. A tipologia de Norman Friedman. O foco narrativo: ou a polêmica em torno da ilusão. 10.ed. São Paulo: Ática, 2004. p. 25-70.
LISPECTOR, C. Feliz aniversário. Laços de família. 28.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. p. 71-86
_____. O jantar. Laços de família. 28.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. p. 71-86.
PAIVA, M.R. Feliz ano velho. São Paulo: Brasiliense, 1984.