Educação

1º de maio e literatura

 O  Dia do  Trabalho remonta ao  ano  1886, quando  operários da cidade de Chicago  foram às ruas pedir  por  melhores condições de trabalho. Eles reivindicavam a redução da jornada de trabalho  de 13 para 8 horas. Como forma de protesto, os  trabalhadores americanos iniciaram  uma greve geral.

Alguns dias após a manifestação, os  trabalhadores confrontaram-se com  policiais e alguns operários foram  mortos no  conflito. Como forma de homenagear os   mortos no  conflito, instituiu-se  1 de maio como  Dia do  Trabalho. No  Brasil, a data é  comemorada desde 1940.

A literatura, como representação de uma visão de mundo,  também reflete questões relacionadas aos anseios dos trabalhadores. O francês Victor  Hugo  publicou as célebres obras  Os miseráveis (1862) e Os trabalhadores do mar (1866);  os  brasileiros Vinícius de  Moraes,   Chico Buarque e  Lúcio  Barbosa escreveram as canções  Operário em  construção (1956), Construção (1971) e Cidadão (conhecida na voz de Zé Ramalho), respectivamente.  Em 1972,  Victor Giudice  publicou  o   livro   O  necrológio, que  continha o  conto  abaixo:

O  arquivo

Victor  Giudice

No fim de um ano de trabalho, joão obteve uma redução de quinze por cento em seus vencimentos.

joão era moço. Aquele era seu primeiro emprego. Não se mostrou orgulhoso, embora tenha sido um os poucos contemplados. Afinal, esforçara-se. Não tivera uma só falta ou atraso. Limitou-se a sorrir, a agradecer ao chefe.

No dia seguinte, mudou-se para um quarto mais distante do centro da cidade. Com o salário reduzido, podia pagar um aluguel menor.

Passou a tomar duas conduções para chegar ao trabalho. No entanto, estava satisfeito. Acordava mais cedo, e isto parecia aumentar-lhe a disposição.

Dois anos mais tarde, veio outra recompensa.

O chefe chamou-o e lhe comunicou o segundo corte salarial.

Desta vez, a empresa atravessava um período excelente. A redução foi um pouco maior: dezessete por cento.

Novos sorrisos, novos agradecimentos, nova mudança.

Agora joão acordava às cinco da manhã. Esperava três conduções. Em compensação, comia menos. Ficou mais esbelto. Sua pele tornou-se menos rosada. O contentamento aumentou.

Prosseguiu a luta.

Porém, nos quatro anos seguintes, nada de extraordinário aconteceu.

joão preocupava-se. Perdia o sono, envenenado em intrigas de colegas invejosos. Odiava-os. Torturava-se com a incompreensão do chefe. Mas não desistia. Passou a trabalhar mais duas horas diárias.

Uma tarde, quase ao fim do expediente, foi chamado ao escritório principal.

Respirou descompassado.

— Seu joão. Nossa firma tem uma grande dívida com o senhor.

joão baixou a cabeça em sinal de modéstia.

— Sabemos de todos os seus esforços. É nosso desejo dar-lhe uma prova substancial de nosso reconhecimento.

O coração parava.

— Além de uma redução de dezesseis por cento em seu ordenado, resolvemos, na reunião de ontem, rebaixá-lo de posto.

A revelação deslumbrou-o. Todos sorriam.

— De hoje em diante, o senhor passará a auxiliar de contabilidade, com menos cinco dias de férias. Contente?

Radiante, joão gaguejou alguma coisa ininteligível, cumprimentou a diretoria, voltou ao trabalho.

Nesta noite, joão não pensou em nada. Dormiu pacífico, no silêncio do subúrbio.

Mais uma vez, mudou-se. Finalmente, deixara de jantar. O almoço reduzira-se a um sanduíche. Emagrecia, sentia-se mais leve, mais ágil. Não havia necessidade de muita roupa. Eliminara certas despesas inúteis, lavadeira, pensão.

Chegava em casa às onze da noite, levantava-se às três da madrugada. Esfarelava-se num trem e dois ônibus para garantir meia hora de antecedência. A vida foi passando, com novos prêmios.

Aos sessenta anos, o ordenado equivalia a dois por cento do inicial. O organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma raiz das estradas. Dormia apenas quinze minutos. Não tinha mais problemas de moradia ou vestimenta. Vivia nos campos, entre árvores refrescantes, cobria-se com os farrapos de um lençol adquirido há muito tempo.

O corpo era um monte de rugas sorridentes.

Todos os dias, um caminhão anônimo transportava-o ao trabalho. Quando completou quarenta anos de serviço, foi convocado pela chefia:

— Seu joão. O senhor acaba de ter seu salário eliminado. Não haverá mais férias. E sua função, a partir de amanhã, será a de limpador de nossos sanitários.

O crânio seco comprimiu-se. Do olho amarelado, escorreu um líquido tênue. A boca tremeu, mas nada disse. Sentia-se cansado. Enfim, atingira todos os objetivos. Tentou sorrir:

— Agradeço tudo que fizeram em meu benefício. Mas desejo requerer minha aposentadoria.

O chefe não compreendeu:

— Mas seu joão, logo agora que o senhor está desassalariado? Por quê? Dentro de alguns meses terá de pagar a taxa inicial para permanecer em nosso quadro. Desprezar tudo isto? Quarenta anos de convívio? O senhor ainda está forte. Que acha?

A emoção impediu qualquer resposta.

joão afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele enrijeceu, ficou lisa. A estatura regrediu. A cabeça se fundiu ao corpo. As formas desumanizaram-se, planas, compactas. Nos lados, havia duas arestas. Tornou-se cinzento.

João transformou-se num arquivo de metal.

Análise do conto:

O conto de Victor Giudice pode  ser analisado a partir da nomeação do  personagem: joão. O  leitor deve observar que, contrariando o  que determina a gramática normativa,  o nome é grafado com minúscula, como se  fosse  um substantivo  comum.  As iniciais  maiúsculas marcam, gramaticalmente, a individualidade de um ser; metaforicamente,  o personagem  joão  é  apresentado como  apenas mais  um empregado.

O  conto narra a história de um trabalhador e para isso utiliza uma lógica invertida:o patrão vê com naturalidade a desvalorização do  trabalho de  seu  funcionário; este, por sua vez, acomoda-se à sua condição profissional. O  leitor atento  notará que, ao contrário de ser promovido,  joão  é  “reduzido”. O  autor  anuncia desde a primeira frase a condição  precária de seu personagem –  “joão obteve uma redução de quinze por cento em seus vencimentos.” Como  consequência de sua redução, joão  muda-se para  um bairro  mais  distante, precisa acordar mais cedo, sofre um corte salarial, emagrece, trabalha mais duas horas além do  jornada habitual. O único  momento  em que a  narrativa parece  voltar ao normal –  “Sabemos de todos os seus esforços. É nosso desejo dar-lhe uma prova substancial de nosso reconhecimento.” – é, na verdade,  o  momento  em que  joão descobre que será rebaixado de posto. O processo de  desumanização de joão  é  concluído  no último parágrafo: “João transformou-se num arquivo de metal”. É, ainda,  o  único  parágrafo em que  o  nome do  personagem é escrito  com inicial  maiúscula,  individualizando-o.

Atualização em 01/05/2015:   Veja  nossa análise do poema Operário em construção.

Leia mais  sobre o Dia do  Trabalho no  blog História Digital.

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Andréa Motta

Professora de Língua Portuguesa , Literatura e Formação do Leitor Literário no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro.

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