O trecho citado no título faz parte do poema Se eu morresse amanhã, de Álvares de Azevedo, poeta cujas obras são estudadas no contexto da segunda geração romântica. O texto daquele poeta será usado para compreendermos a produção literária do período.
O Romantismo brasileiro aconteceu no período de 1836 a 1850 e, tradicionalmente, a produção literária da época é dividida em três gerações: nacionalismo, ultrarromantismo e condoreirismo. A primeira correspondeu ao desejo de valorizar a temática nacional em oposição à portuguesa e, para alcançar tal objetivo, inspirou-se em lendas do passado e na glorificação do indígena. A segunda – tema deste texto – caracterizou-se pela corrente individualista a que aderiram autores como Álvares de Azevedo, Junqueira Freire, Casimiro de Abreu, Visconde de Taunay. Já a terceira anunciou o movimento literário seguinte, muitas vezes por meio de textos de cunho abolicionista e republicano; nesse grupo, encontramos poetas como Castro Alves.
Os textos da segunda geração romântica refletem a obsessão pela morte, pela melancolia, pela dor dos amores não correspondidos, pela lembrança da infância. A morte é vista, nessa geração, como a única saída para o descontentamento do eu lírico. O poema Se eu morresse amanhã, de Álvares de Azevedo, é bastante representativo desse momento.
Se eu morresse amanhã
Álvares de Azevedo
Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!
Quanta glória pressinto em meu futuro!
Que aurora de porvir e que manhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!
Que sol! que céu azul! que doce n’alva
Acorda a natureza mais louçã!
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã!
Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o dolorido afã…
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!
O texto é parte de uma coletânea publicada em 1853 – um ano após a morte de seu autor – e intitulada Lira dos vinte anos. É importante observar que todo o texto é construído a partir de uma hipótese – o que, gramaticalmente, é obtido por meio do subjuntivo. Esse modo enuncia a ação do verbo como “algo eventual, incerta, irreal, em dependência estreita com a vontade, a imaginação ou o sentimento daquele que o emprega. Por isso, as noções temporais não são precisas como no indicativo” (CUNHA & CINTRA, 2008, p. 487). No título do poema, podemos perceber a preocupação do eu lírico em relação ao seu futuro e ao de sua família caso viesse a falecer. Uma das características mais marcantes do movimento romântico é a idealização e o eu lírico fantasia sobre o momento de sua morte: como seus familiares se comportariam naquela situação?
Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!
Álvares de Azevedo morreu de tuberculose aos 21 anos e expôs sua doença em muitos de seus textos, como em Lembrança de morrer (“Quando em meu peito rebentar-se a fibra…”). Em Se eu morresse amanhã, aparece a incerteza sobre o futuro; ao contrário dos outros jovens de sua idade, o eu lírico (talvez uma representação do próprio poeta) não viveria nenhuma glória e, por isso, evocava a própria morte:
Quanta glória pressinto em meu futuro!
Que aurora de porvir e que manhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!
Ao mesmo tempo em que lamenta por uma morte tão prematura, ele também a exalta como solução para a dor física que o atormenta. O escapismo – uma das características do Arcadismo e do Romantismo – é o desejo de fugir a uma situação conflituosa; no texto de Azevedo, o eu lírico livrar-se-ia da dor se morresse.
Que sol! que céu azul! que doce n’alva
Acorda a natureza mais louçã!
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã!
Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o dolorido afã…
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!
É interesse observarmos, ainda, o recurso linguístico utilizado nas duas estrofes destacadas. O leitor deve notar que, nos dois últimos versos de cada uma delas, o autor afasta-se da norma culta ao elaborar a hipótese: em lugar de bateria e emudeceria, Azevedo utiliza batera e emudecera. Em uma leitura superficial do texto, podemos julgar que o jovem poeta comete um erro gramatical, utilizando os verbos no pretérito mais-que-perfeito do indicativo. Ao analisarmos a métrica do texto, percebemos que o poeta assim o faz com o propósito de manter a quantidade de sílabas métricas.
Ouça a leitura do poema:
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Na recitação, a contagem de sílabas é feita de modo diverso daquele utilizado na contagem gramatical. Enquanto nesta contam-se todas as sílabas, naquela a contagem para na última sílaba tônica, “desprezando-se a átona ou as átonas finais” (BECHARA, 2009, p. 630). A contagem poética considera o que será percebido por meio de leitura oral (realidade auditiva). Se eu morresse amanhã é um poema em que predominam os versos decassílabos; isto é, de 10 sílabas métricas. O leitor deve observar que, na segunda contagem, sublinhamos alguns trechos; eles indicam as sílabas contadas de maneira diferente. Na leitura de versos, proferimos as palavras com junções ou pausas exigidas pela técnica versificatória. Esse foi o recurso utilizado por Álvares de Azevedo.
Contagem gramatical:
Mas| es|sa| dor| da| vi|da| que| de|vo|ra (11 sílabas)
A| ân|sia| de| gló|ria|, o| do|lo|ri|do| a|fã… (13 sílabas)
A |dor |no| pei|to |e|mu|de|ce|ra| ao| me|nos (13 sílabas)
Se| eu| mor|res|se| a|ma|nhã! (8 sílabas)
Contagem poética:
Mas| es|sa| dor| da| vi|da| que| de|vo|ra (10 sílabas)
A ân|sia| de| gló|ria, o| do|lo|ri|do a|fã… (10 sílabas)
A |dor |no| pei|to e|mu|de|ce|ra ao| me|nos (10 sílabas)
Se eu| mor|res|se a|ma|nhã! (6 sílabas)
Como representante da segunda geração do Romantismo, o adolescente Álvares de Azevedo escreveu sobre os dramas, as aspirações, as decepções, os desejos e a rebeldia juvenis. No texto aqui analisado, podemos notar que o poeta não se inspirava em situações exteriores, mas a inspiração vinha dele mesmo e de suas experiências de vida.
Leia mais no blog:
Características gerais do Romantismo
Romantismo brasileiro e culturas indígenas
Referências:
AZEVEDO, A. Lembrança de morrer. Disponível em <http://www.jornaldepoesia.jor.br/avz4.html#lembranca>. Acesso em 10 set. 2016.
BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
CUNHA, C; CINTRA, L. Nova gramática do português contemporâneo. 5. ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2008.
Sou fã do Álvarez de Azevedo! Conheço o poema “Se eu morresse amanhã!”, o problema é que nunca o encontrei em várias edições da “Lira dos vinte anos”. Em que edição eu encontro este poema?
Ficarei agradecido ao responderem!
Andréa Motta, que trabalho maravilhoso o seu não tenho como te agradecer por disponibilizar o seu precioso tempo para deixar, aqui, um belíssimo trabalho como o que acabei de ler, não posso dizer especificamente de apenas esse em particular, pois estaria sendo leviano com os demais que ainda não os li, mas sei que é de grande valia e os lerei com certeza.
Deus levou para junto de si o escritor, Umberto Eco, todos nos amantes da literatura estamos de luto, mas sabemos que faz parte da vida e só precisamos aceitar. Dono de frases que ficaram famosas como: “O drama da Internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”; “Quem não lê, aos 70 anos terá vivido só uma vida. Quem lê, terá vivido 5 mil anos. A leitura é uma imortalidade de trás para frente”.
Ele dizia que não queria mais escrever porque a concorrência com os Ismartphones era desleal. Quem sou eu para discordar, mas eu acredito que a internet nos ajuda sim a ler mais e ter contato com obras fantásticas e digo isso porque estou apaixonadíssimo pelo blog conversa de português. Aqui, eu encontro-me com a cultura elevo minha alma a novos horizontes no qual fujo da realidade política e socioeconômica do país.
Andréa Motta, sinta o meu abraço carinhoso mesmo que virtualmente. Sim um abraço de agradecimento por tão valioso trabalho que, com certeza, foi feito com muito amor e carinho.
Oi, Evaldo, eu fico muito feliz por saber que tenho um leitor antigo e sempre fiel.