Uma das minhas turmas do Ensino Médio fez uma avaliação sobre o Simbolismo, movimento literário que, no Brasil, ocorreu na virada do século 19 para o século 20. Os poemas que deveriam ser analisados pelos alunos são Cárcere das almas, de Cruz e Souza, e Cantem outros a clara dor virente, de Alphonsus de Guimaraens. Nas aulas anteriores, nós lemos os textos Antífona e Violões que choram, também de Cruz e Souza e, para a avaliação, os alunos deveriam responder a questões referentes à interpretação do título do primeiro texto, recursos linguísticos que contribuem para a musicalidade do texto simbolista e as influências românticas e parnasianas.
Como já publiquei, em outro texto, o Simbolismo no Brasil começa oficialmente em 1893 com a publicação de Missal e Broquéis, de Cruz Souza. O movimento surgia como uma reação à poesia parnasiana, cuja produção valorizava a técnica da escrita e a riqueza vocabular. Veja abaixo um dos textos lidos pela turma para análise:
Cárcere das almas
Cruz e Souza
Ah! Toda alma num cárcere anda presa
Soluçando nas trevas, entre as grades
Do calabouço olhando imensidades,
Mares, estrelas, tardes, natureza.
Tudo se veste de igual grandeza
Quando a alma entre grilhões as liberdades
Sonha e, sonhando, as imortalidades
Rasga no etéreo Espaço da Pureza.
Ó almas presas, mudas e fechadas
Nas prisões colossais e abandonadas
Da Dor no calabouço, atroz, funéreo!
Nesses silêncios solitários, graves,
Que chaveiro do Céu possui as chaves
Para abrir-nos as portas do Mistério?!
Vocabulário
- Calabouço: prisão subterrânea; cárcere.
- Grilhão: corrente que prende os condenados; cadeia, algema.
- Funéreo: relativo à morte, aos mortos ou a coisas que com eles se relacionem.
- Etéreo: sublime, puro, elevado; celeste, celestial.
O crítico Gilberto Mendonça Telles (1999) afirma que quanto mais metafórica e simbólica é a linguagem do texto literário mais ele se aproxima do Romantismo e o Simbolismo. No poema acima, o cárcere é utilizado para simbolizar o corpo que representa uma prisão para a alma (“Toda alma num cárcere anda presa”). O eu lírico exprime seu desejo de transcender o corpo físico e superar os limites impostos ao ser humano, como se pode observar nos versos “Que chaveiro do Céu possui as chaves/ Para abrir-nos as portas do Mistério?!”. Note, ainda, que o desejo de superar a prisão física é reforçado em “Quando a alma entre grilhões as liberdades / sonha e, sonhando, as imortalidades/ Rasga no etéreo Espaço da Pureza.”
A religiosidade era um dos temas do Simbolismo, o que podia ser expresso por meio de vocabulário litúrgico – presente em textos como Antífona, de Cruz e Souza – ou com o destaque para os limites da alma. O poema representa a concepção mística da vida – uma característica típica do Simbolismo – e sugere que nenhuma alma é feliz. Tal sugestão é apresentada por meio de metáforas (“Toda alma num cárcere anda presa”; “Ó almas presas, mudas, fechadas / nas prisões colossais e abandonadas”). É bom lembrar que uma das principais características do Simbolismo é a subjetividade; assim, o eu lírico exige do leitor a percepção de que o cárcere é utilizado como uma representação desse sentimento de angústia que permeia todo o texto.
Cantem outros a clara cor virente
Alphonsus de Guimaraens
Cantem outros a clara cor virente
Do bosque em flor e a luz do dia eterno…
Envoltos nos clarões fulvos do oriente,
Cantem a primavera: eu canto o inverno.
Para muitos o imoto céu clemente
É um manto de carinho suave e terno:
Cantam a vida, e nenhum deles sente
Que decantando vai o próprio inferno.
Cantem esta mansão, onde entre prantos
Cada um espera o sepulcral punhado
De úmido pó que há de abafar-lhe os cantos…
Cada um de nós é a bússola sem norte.
Sempre o presente pior do que o passado.
Cantem outros a vida: eu canto a morte…
Vocabulário:
- Clemente: bondoso, benigno.
- Decantar: exaltar, engrandecer.
- Fulvo: amarelado.
- Imoto: imóvel
- Virente: verdejante, florescente.
No texto acima, também é possível observar a ideia de que a alma está presa e que só a morte pode ser libertação: “Cantem esta mansão, onde entre prantos / Cada um espera o sepulcral punhado/ de úmido pó que há de abafar-lhe os cantos…”. Uma vez que o eu lírico almeja a liberdade suprema de sua alma, ele transfere a outros a felicidade de exaltar a alegria da vida e o contato com a natureza (usada aqui como símbolo de tudo o que é belo): “Cantem a primavera: eu canto o inferno”. Enquanto para outros o céu é símbolo de ternura, o eu lírico o deseja como um fim, visto que sua vida não tem sentido: “Cada um de nós é bússola sem norte”.
Além da religiosidade que fornece o vocabulário aos textos, o Simbolismo é um movimento literário em que se privilegia a musicalidade. Como já explicamos em outro artigo, os primeiros textos do movimento sugeriam que a música era mais importante até que a literatura, como aparece no poema “Arte poética”, de Mallarmè: “Antes de tudo, a música preza/ portanto, o ímpar. Só cabe usar /o que é mais vago e solúvel no ar /sem nada em si que pousa ou que pesa”.
Os dois textos são estruturados como sonetos (duas quadras e dois tercetos); formato que já estava presente em movimentos anteriores como o Barroco, o Romantismo e o Parnasianismo. Nos dois poemas, podemos observar alguns recursos linguísticos que contribuem para a sonoridade: rima, métrica, figuras de construção.
Quando observamos o esquema de rimas e a métrica em “Cárcere das almas”, percebemos verbos decassílabos, distribuídos em quadras organizadas em rimas opostas, quando o 1º verso rima com o 4º, e o 2º com o 3º (o chamado esquema A-B-B-A); já os tercetos, mantém o esquema A-A-B . Observe:
Ah! Toda alma num cárcere anda presa
Soluçando nas trevas, entre as grades
Do calabouço olhando imensidades,
Mares, estrelas, tardes, natureza.
[…]
Ó almas presas, mudas e fechadas
Nas prisões colossais e abandonadas
Da Dor no calabouço, atroz, funéreo!
Em “Cantem outros…”, observamos que quadras e tercetos são organizados em rimas alternadas (A-B-A-B). Veja:
Para muitos o imoto céu clemente
É um manto de carinho suave e terno:
Cantam a vida, e nenhum deles sente
Que decantando vai o próprio inferno.
Cantem esta mansão, onde entre prantos
Cada um espera o sepulcral punhado
De úmido pó que há de abafar-lhe os cantos…
Podemos observar também, algumas figuras de linguagem que contribuem para o ritmo do texto. Uma das características herdadas de movimentos anteriores foi o gosto pelas aliterações (repetição de sons consonantais para intensificação do ritmo ou estabelecimento de um efeito sonoro significativo) e pelas assonâncias (repetição de sons vocálicos idênticos). Não podemos esquecer que, nessas figuras de linguagem (assim como nas rimas), o que se observa é o som e não a letra, visto que letras diferentes podem corresponder ao mesmo som. Nos trechos transcritos acima, temos a assonância do fonema nasal /ã/ que se repete em diversas palavras: manto, cantam, decantando, prantos. Podemos, também, observar aliterações sutis como a que está presente na primeira estrofe do poema de Cruz e Souza: presa, treva, estrela…
Outro ponto importante para a compreensão dos textos simbolistas é a influência do Romantismo e, sobretudo, do Parnasianismo sobre as produções. O Simbolismo pode ser compreendido como uma reação às correntes científicas do século 19; assim como o Romantismo, exprime o desgosto pelo soluções racionalistas e recusa-se a limitar a poesia a uma “descrição dos objetos ou à técnica de produzi-lo” (BOSI, 1999, p. 263). O simbolista almeja os valores transcendentais: o Bem, o Belo, o Verdadeiro, o Sagrado e, desse modo, “caminham” em direção oposta à ciência. Do Parnasianismo o movimento simbolista herda a paixão pelo efeito estético; por isso, mantiveram estruturas poéticas e os recursos linguísticos recorrentes em seu antecessor.
Leia mais no blog:
Bibliografia:
BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. 33. ed. São Paulo: Cultrix, 1999.
JUNKES, L. Roteiro da poesia brasileira: simbolismo. São Paulo: Global, 2006.
Acho muito interessante ler poemas e análises deles, sempre joga na minha cara que eu não prestei atenção direito 😌 no mais, é bem legal, gostei da análise~
Oi, Cyndi. Fico feliz por ter o seu comentário aqui no blog e por saber que você gostou dos poemas. Sobre “não prestar atenção direito”, é bem diferente quando lemos algo sem a obrigação de fazer um trabalho para a escola. A leitura flui, não é?
Gostei muito das análises feitas!
Que bom! Obrigada pela visita e pelo comentário.