O defunto é sempre um boa praça.
(Nelson Rodrigues, em Viúva porém honesta)
Nelson Rodrigues nasceu em Recife, em 23 de agosto de 1912, e morreu no Rio de Janeiro em 1980. Nelson foi chamado de O anjo pornográfico, embora a pornografia – como talvez entendamos o termo hoje – não fosse explícita. A sua obra era repleta de críticas sociais, morais, políticas. Nelson abordava sem pudor o adultério, o incesto, o ciúme doentio – tabus!
Pela manhã, eu perguntei , por meio da página de fãs do Conversa de Português no Facebook, qual obra de Nelson Rodrigues é a favorita dos leitores. Meu texto favorito é A mulher sem pecado, cuja primeira montagem estreou em 9 de dezembro de 1942, nos palcos do Teatro Carlos Gomes no Rio de Janeiro – foi a primeira peça do dramaturgo. Nelson só conseguiu montar o espetáculo com a ajuda Vargas Neto, que a recomendou a Abadie Faria Rosa, diretor do Serviço Nacional do Teatro. O momento político em que o Brasil estava inserido era o Estado Novo; o pedido encaminhado pelo sobrinho do presidente Getúlio Vargas valia como um decreto e o texto foi encenado pela Comédia Brasileira, a companhia de teatro oficial do Estado.
Em A mulher sem pecado, temos o obsessivo Olegário que sofre de ciúmes da esposa e se atormenta com a incerteza de ser ou não traído. Lígia não lhe dá motivos para desconfianças, mas o empresário, preso a uma cadeira de rodas há sete meses e sem poder cumprir seus deveres matrimoniais, não acredita na esposa. Tal como o Otelo, da peça homônima de Shakespeare, Olegário crê em falsas pistas de adultério e confia ao motorista a função de vigiar sua jovem esposa.
No trecho a seguir, o momento em que Olegário interroga Umberto, o motorista, após seu retorno de um passeio com a patroa:
OLEGÁRIO – D. Lídia estava olhando para alguém , para alguém … “particularmente”? Olhar sem querer, por acaso, ela podia olhar. Mas eu quero saber é se olhava para alguém com insistência.
UMBERTO (depois de um silêncio, em voz baixa) – Na calçada estava aquele sujeito coxo.
OLEGÁRIO (virando a cadeira para Umberto com espanto) – Que sujeito coxo é esse?
UMBERTO – É um que sempre está na calçada quando D. Lídia vai à Colombo.
[…]
OLEGÁRIO (apreensivo) – D. Lídia olha pra ele?
UMBERTO – Não.
(RODRIGUES, 2005, p.13)
A cada retorno de passeio, Olegário perguntava a mesma coisa (“D. Lígia olhou para alguém?). Sufocada pelo ciúme do marido, Lídia é induzida à traição e foge com o motorista da família. A fuga ocorre instantes após Olegário confessar ter fingido a paralisia para melhor testar a fidelidade da esposa.
Embora os temas de Nelson já não fossem novidade – vale aqui lembrar que incestos e adultérios também foram temas dos escritores do século XIX – o vocabulário usado pelo dramaturgo não era usual, principalmente no regime político em que o Brasil estava. Levar a fala do povo para o palco: o que já era um indício no teatro romântico de Martins Pena, tornou-se uma característica no teatro rodriguiano. Ainda no primeiro ato, Olegário chama Joel, outro funcionário da casa; deseja saber se olham Lídia, se falam dela no bairro. O empregado conta-lhe sobre Sampaio, um homem que conhecia Lídia desde o tempo em que ela morava no Grajaú, época em que era conhecida como V8. A edição da peça, publicada pela Editora Nova Fronteira, traz uma nota de rodapé em que se lê a seguinte observação: “[…] V8 era um tipo de motor possante usado em vários modelos Ford, dando nome a eles. Na década de 40, os V8 tinham linhas curvas, uma frente proeminente e uma traseira avantajada. Eram carros muito populares, que todo mundo gostaria de ter…”. Em outro ponto, o protagonista profere a frase “Toda mulher bonita deveria ser namorada lésbica de si mesma!”. O público brasileiro não estava acostumado à tamanha informalidade e Nelson inaugurava o teatro modernista brasileiro. Escandalizou o público e a crítica, porém esta foi unânime ao exaltar o caráter literário de sua obra.
Após o sucesso com A mulher sem pecado, Nelson publicou Vestido de noiva (1943), que talvez seja sua obra mais conhecida. Além das obras teatrais, há as crônicas e os contos. Em 1951, Nelson começou a série de contos “A vida como ela é”, publicada no jornal Última Hora , e que no final da década de 1990 inspirou série homônima na Rede Globo de Televisão.
Viúva alegre, um dos contos da série A vida como ela é.
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Referências:
MARQUES, F. Teatro hiperbólico. Cult: revista brasileira de literatura. São Paulo: Lemos Editorial,
RODRIGUES, N. A mulher sem pecado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
_________. Teatro completo, v.3. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004
_________. Viúva porém honesta. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.