Ontem, 19 de abril, foi publicada no Facebook uma imagem em que se lia “Feliz dia do índio pra você que diz pra mim fazer”. A imagem foi curtida e compartilhada por dezenas de usuários. Ao vê-la, decidi que mudaria totalmente o planejamento das minhas aulas de hoje.
Minha primeira reação ao ver o texto foi publicar uma mensagem em que eu argumentava que dizer ‘para mim fazer’ nenhuma relação tem com o Dia do Índio, além de considerar a ideologia transmitida pela imagem algo preconceituoso e vergonhoso. Percebi que era urgente levar a discussão para a sala de aula, já que a maioria dos meus 401 amigos no Facebook é aluno da instituição onde trabalho. Abordei o tema em todas as aulas do dia! No Ensino Superior, aproveitei que a discussão era sobre o texto Educação contra a bárbarie ,de Theodor Adorno. No Ensino Médio, propus uma roda de debates para a qual elaborei um roteiro em três etapas: análise da imagem e debate, aspectos linguísticos e produção textual.
1. Roteiro da primeira etapa:
Divisão das turmas em grupo
As turmas têm, em média, 30 alunos. Solicitei que se dividissem em grupos de até 5 componentes.
2. Distribuição da imagem impressa
Cada um recebeu uma folha de papel A4 com a imagem impressa e a seguinte pergunta: O que você pensa dessa imagem?
Lembrei aos alunos da procedência do texto e expliquei que deveriam debater nos grupos sobre o conteúdo do texto. Expliquei que eu não interferiria no desenvolvimento do debate; eles deveriam conversar sobre os aspectos que considerassem pertinentes.
3. Exposição da opinião do grupo
Enquanto os alunos debatiam nos grupos, eu anotava algumas coisas ditas por eles sem que o soubessem: “Eu acho isso preconceituoso“, “Esse país é uma vergonha!”, “Parece até que eles são sem cultura…”, “As pessoas acham que eles falam assim.”, “Isso é preconceito social.”, “Isso é preconceito linguístico”, “Isso é preconceito sociolinguístico”, “Isso é preconceito racial”, “O português não é a língua nativa deles; eles não têm obrigação de falar português direito”, “Mas quem foi que disse que eles não falam português direito?”.
Cada grupo escolheu um representante para expor a opinião sobre o texto e passamos a conversar todos em um grande grupo. Conversamos sobre os conceitos de cultura, preconceito, etnia, raça, preconceito linguístico e norma culta. Nesse momento, eu contei às turmas sobre a visita que o professor indígena José Guajajara fizera ao campus em 2011 com o objetivo de conversar com os professores sobre a sua cultura.
2ª etapa: aspectos linguísticos
Conversamos sobre a maneira como a gramática normativa entende a expressão “pra mim fazer”, de que maneira deve ser usada e a recepção de expressões semelhantes à do texto distribuído.
Após o debate sobre o que as gramáticas prescrevem sobre o uso dos pronomes oblíquos, distribuí um fragmento do livro Não é errado falar assim, de Marcos Bagno. Lemos o trecho intitulado Os puristas e a mentira do vale-tudo, em que o professor explica o surgimento da estrutura para mim + infinitivo. Uma das observações do professor é o fato de a estrutura aparecer em obras literárias do século XIX, como em Inocência, de Visconde de Taunay. O escritor romântico fizera em nota de rodapé, na edição de 1872, a seguinte observação: “É este erro comum no interior de todo o Brasil, sobretudo na província de São Paulo, onde pessoas até ilustradas nele incorrem com frequência”. A frase de Taunay provocou novo debate em uma das turmas: o que é, afinal, certo ou errado no uso da língua portuguesa? Passamos, então, a um novo debate sobre variação e variedade linguística.
O professor Bagno transcreve, em seu texto, um trecho da Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Cunha & Cintra:
Do cruzamento das duas construções perfeitamente corretas: “Isto não é trabalho para eu fazer”, “Isto não é trabalho para mim“, surgiu uma terceira: “Isto não é trabalho para mim fazer”,em que o sujeito do verbo no infinitivo assume a forma oblíqua.
A construção parece ser desconhecida em Portugal, mas no Brasil ela está muito generalizada na língua familiar, apesar do sistemático combate que lhe movem os gramáticos e os professores do idioma. (BAGNO, 2009, p.35)
O professor Bagno defende que esta seja uma forma típica do português brasileiro (PB) que, desde o início da colonização do Brasil, tende a se afastar da sintaxe presente na variante europeia.
3ª etapa: produção textual
Os alunos receberam a tarefa de produzir um texto dissertativo sobre o tema do debate.
Em uma das turmas do Ensino Médio, um aluno resumiu a proposta do trabalho da seguinte maneira: “Moral da história, professora: aluno seu não curte e não compartilha isso!”. Acho que eles entenderam direitinho que a aula de hoje não era apenas sobre língua portuguesa!
Leia no blog:
O elemento indígena no português do Brasil
Leia fora do blog:
Leia sobre a visita do professor Guajajara em 2011. Clique AQUI.
Referência:
BAGNO, M. Não é errado falar assim. São Paulo: Parábola, 2009.
Muito orgulho de ter sido sua aluna…Graças a Você conheci o Marcos Bagno através do livro A língua de Eulália, e minha mente simplesmente se abriu! Beijos!!
Carolina, que recadinho lindo! Muito obrigada! Eu fico feliz por saber que as nossas leituras influenciaram você de algum modo. Beijinhos!
parabéns! Bela atitude. pena que não posso trabalhar esta imagem com meus alunos, pois seria uma forma de compartilha conhecimentos.
Nelcina, obrigada pela visita! Volte sempre!
Andrea, você lavou minha alma. 🙂 Que sorte tem seus alunos. Eu recebi esta imagem e nem estou querendo lembrar quem passou , deu tristeza. Muita tristeza. Vou compartilhar este seu post, isso sim.
beijo