Nós já publicamos aqui, no Conversa de Português, quais são os critérios utilizados para a inclusão de um novo vocábulo no dicionário. No texto Lexicografia, explicamos que a nova palavra será incluída no dicionário se respeitar as regras morfológicas e ortográficas da língua. Um outro fator relevante é a sua aceitação pela comunidade de falantes; assim, as últimas edições dos dicionários contêm palavras como blogar, deletar, tuitar. Quem é professor de Língua Portuguesa está acostumado a responder perguntas sobre o tema; incomum mesmo é alguém questionar as definições apresentadas naqueles livros.
Os dicionários, normalmente, apresentam os verbetes e seus significados a partir da seguinte estrutura: entrada ou cabeça (com ou sem divisão silábica), ortoepia (ou seja, a pronúncia correta), categoria gramatical (às vezes, com indicação etimológica), abreviações, definição. Esse último item costuma incluir os sentidos denotativos e conotativos; algumas equipes lexicográficas incluem, ainda, o sentido pejorativo que costuma ser atribuído a determinados verbetes. Foi justamente a inclusão de um item como esse que provocou uma ação do Ministério Público Federal em Minas Gerais.
O MPF considera ofensiva a maneira como o verbete cigano é definido pelo Houaiss: Dicionário da Língua Portuguesa e solicitou a suspensão da tiragem, venda e distribuição do conceituado dicionário.
Para este texto, usamos a 4ª edição do Houaiss, publicada em 2010, com reimpressão em 2012:
ci.ga.no adj. s.m. 1(indivíduo) dos ciganos, povo itinerante que emigrou da Índia para todo o mundo, com talento para a música e a magia; zíngaro. 2. pej. que(m) tem vida incerta e errante; boêmio.
Em entrevista ao site Terra, o responsável pela ação iniciada em 2009 disse que o conceito apresentado possui caráter discriminatório e fere o artigo 20 da Lei Nº 7.716 de 7 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor:
Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97). Pena: reclusão de um a três anos e multa.
§ 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97). Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.
§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza: (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97). Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.
§ 3º No caso do parágrafo anterior, o juiz poderá determinar, ouvido o Ministério Público ou a pedido deste, ainda antes do inquérito policial, sob pena de desobediência: (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)
I – o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material respectivo;
II – a cessação das respectivas transmissões radiofônicas ou televisivas.
II – a interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação na rede mundial de computadores. (Incluído pela Lei nº 12.288, de 2010).
§ 4º Na hipótese do § 2º, constitui efeito da condenação, após o trânsito em julgado da decisão, a destruição do material apreendido. (Parágrafo incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)
Segundo o entrevistado, “ao se ler em um dicionário, por sinal extremamente bem conceituado, que a nomenclatura ‘cigano’ significa aquele que trapaceia, velhaco, entre outras coisas do gênero, ainda que se deixe expresso que é uma linguagem pejorativa, ou, ainda, que se trata de acepções carregadas de preconceito ou xenofobia, fica claro o caráter discriminatório assumido pela publicação” . De acordo com o site Terra, foi pedida a condenação dos réus – a Editora Objetiva e o Instituto Houaiss – ao pagamento de indenização por dano moral coletivo no valor de R$ 200 mil.
Vejamos como o Míni Aurélio: o dicionário da língua portuguesa apresenta o mesmo verbete.
ci.ga.no [Fr. tzigane ou tsigane] sm. 1. Indivíduo de povo nômade, que tem um código ético próprio, vive de artesanato, cartomancia, quiromancia e se dedica à música. 2. Pop. Homem de vida incerta.
Não é raro vermos discussões sobre preconceitos contra negros e outras minorias. De acordo com o Censo 2010 do IBGE, cerca de 800 mil ciganos vivem no Brasil, espalhados por 291 cidades; a maioria em péssimas condições . Além de serem vítimas de preconceito de todo tipo, ainda vivem um outro tipo de problema: falta-lhes educação, uma vez que 90% são analfabetos.
Ter representação no CNPIR (Conselho Nacional de Políticas de Igualdade Racial) e na Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais) parece não garantir igualdade de direitos a todo o povo cigano. As comunidades de tradição nômade ficam excluídas de programas de assistência social como o bolsa-família, tratamento dentário e vacinação.
Qual é a sua opinião sobre a ação movida pelo Ministério Público Federal em Minas Gerais? Você considera relevante a retirada dos dicionários caso o verbete não seja alterado? Existe comunidade cigana na sua região? Deixe sua opinião nos comentários.
Leia fora do blog:
O povo cigano no Brasil (Série que recebeu, em 2010, o Prêmio Roquette Pinto)
Centro de Referência Cigana é inaugurado em Sousa.
MPF alega preconceito e pede fim da circulação do Dicionário Houaiss