Linguística

Os palpiteiros e a cruzada a favor da língua

 Há quem  dê palpite sobre moda. Há  quem  dê  palpite sobre futebol. Há, ainda, aqueles que dão  palpite sobre a  vida dos outros. O bom palpiteiro, no entanto,  é  aquele que se acredita expert quando  o  tema  é o uso  da língua portuguesa.   No  último final de semana,  um telejornal de  grande audiência anunciou que  o  Ministério da Educação comprara  livros com “erros de português” e estes seriam  distribuídos  a alunos  do  Ensino Fundamental  na modalidade Educação de  Jovens e Adultos (EJA). A fim de defender a moral  e os  bons costumes – quer dizer, o  bom  uso  da “última flor do  Lácio, inculta e bela” – foram  selecionados  trechos aleatórios da obra em que  os  autores diziam ser permitido  o  uso de variedade linguística diferente daquela fixada pelas gramáticas. No  trecho usado pela  reportagem,  os autores dizem que o  falante pode dizer “os livro, mas dependendo da situação será vítima de preconceito linguístico”. Foi o suficiente para  começar uma santa Cruzada contra o livro  profano.

Eu entendi que os  autores propuseram  uma  abordagem sociolinguística em  sala de aula e o  fizeram também  em obediência aos  Parâmetros  Curriculares Nacionais, mas a reportagem fez a festa dos ignorantes, dos palpiteiros de plantão e dos atrasados, pois  estes consideram  ser a variedade (dita) culta a única possibilidade de uso da língua portuguesa.  Hoje, perguntei  a alunos do  último ano  do  Ensino  Médio se eles acreditam falar 100% como  mandam  as gramáticas.  Conduzi  um debate sobre o  alvoroço  causado  pelo  livro  e pela  reportagem.  Passamos, então, a observar nosso  jeito de falar durante a aula de LÍNGUA PORTUGUESA, até  que  uma  das alunas soltou  a seguinte frase: “Então, me tira uma dúvida…”. Ora,  ”me tira” está  de acordo com o que a  gramática nos  ensina sobre colocação  pronominal? Não diz a gramática que a próclise é  proibida depois da pausa? A mesma gramática  também   não diz que o uso do  imperativo  ali também  está  errado?  E quem, afinal, usa isso  o  tempo todo? TODOS nós, em algum momento,  dizemos “me tira uma dúvida”, “vi ele” e outras coisinhas – pecadinhos  linguísticos!

Uma de  minhas  alunas fez-me o seguinte questionamento: “Mas será  que as crianças menores estão prontas para a abordagem sociolinguística? Será que ensinar tantas variedades linguísticas ao mesmo  tempo  não causará  problemas?” Expliquei à turma  que os linguistas nunca disseram que os professores deveriam  ensinar a dizer ou escrever “a gente vamos, nós foi, os  livro” ou qualquer coisa parecida com  isso.   A proposta  é provocar a discussão  sobre o  conceito  caduco e preconceituoso de erro e acerto. Os  meus alunos estão matriculados  em  um curso de Controle Ambiental e eu encerrei a aula com a paráfrase de um texto do  professor Sírio Possenti, na introdução ao livro Não é errado  falar assim: Se você encontrar uma plantinha não catalogada, dirá  que ela   não existe pelo   fato  de catálogo  nenhum citá-la ou mostrará a  todos que existe uma  nova espécie?  O português  não  padrão  é a plantinha  fora do  catálogo!

Leia  a matéria publicada no  Jornal  O Globo:

MEC distribui livros que aceita erros de português.

No   vídeo abaixo,  o   linguista  Marcos  Bagno  comenta a polêmica  sobre o  livro didático:

Se  não conseguir   visualizar o player,   clique AQUI.

 *Texto atualizado em outubro de  2014.

4 Comments

  1. Para ilustrar esta questão gosto muito de uma metáfora de Marcos Bagno, presente em seu livro “Preconceito Linguístico; o que é, como se faz”.

    “A língua é um rio caudaloso…
    …enquanto a gramática normativa é um igapó”

  2. Andrea, eu estava cursando Letras qdo fiquei grávida há 4 anos e acabei trancando , sinto falta das minhas aulas de linguística e das conversas sobre os textos de marcos bagno . Debates como este me fazem querer voltar a estudar a matéria.

    Como está lindo seu blog!

    beijos

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Andréa Motta

Professora de Língua Portuguesa , Literatura e Formação do Leitor Literário no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro.

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