Linguística

Volta às aulas e variedades linguísticas

As aulas começaram hoje e eu conheci minha nova turminha. Como  já  expliquei aqui, eu  trabalho  em  uma instituição federal e nosso Ensino Médio funciona em regime semestral, assim como no  Ensino  Superior. Meus novos alunos estão cursando o segundo período do Ensino Médio, ou  seja, o  início  do curso. Hoje, fizemos  um exercício de revisão sobre variedades linguísticas, o que  originou  um belíssimo  debate.

O que é  certo e errado quando  o assunto  é  o  uso da língua materna? Gíria é erro gramatical? O que, afinal, é  erro  gramatical? Essas foram  algumas das perguntas feitas após  a leitura da crônica Santos nomes em vão, de Raul Drewnick. O texto narrava o embate linguístico  travado  por dois  gramáticos: Praxedes e Aristarco, apresentados pelo narrador como “o liberal, vendilhão” e o “ortodoxo, quadradão”, respectivamente. Nossa leitura do texto começou pela nomeação dos personagens. Praxedes,  nome que se origina da palavra grega práxis, já indicava ao leitor o posicionamento do personagem sobre o  uso da gramática; Aristarco fez os alunos lembrarem de aristocracia, tradição, e concluíram que o personagem deveria, então, ser  mais rigoroso sobre os conceitos gramaticais.

Praxedes é gramático. Aristarco também.  Com esses nomes não poderiam ser cantores de  rock. Os dois trabalham  num jornal – Praxedes  despacha as  questiúnculas   à   tarde; Aristarco, à noite.  Um jamais  concordou com uma  vírgula  do  outro e  é lógico  que seja assim. Seguem correntes diversas. A gramática tem isso: é democrática. Permitindo mil versões, dá a  quem sustenta uma delas o prazer de   vencer 999.

[…]

Para que os dois não se matem, o chefe pôs cada um num horário. Praxedes, mais liberal (vendilhão, segundo Aristarco), trabalha nos suplementos do jornal, que admitem uma linguagem  mais  solta. Aristarco, ortodoxo (quadradão, segundo Praxedes), assume as vírgulas dos editoriais e das  páginas de  política e  economia.

Em determinado  momento  do  texto, os   dois gramáticos engalfinham-se na fila do banco e um boy, que a tudo  assistia, resumiu a briga do  seguinte modo:

–  Pra  mim, esses caras não é  bom da  bola.  Eles começaram a  falá em  estrangero, um estranhô o  outro, os dois  foram  se  esquentando, se esquentando, e aí aquele, ó, que   também  fala  brasileiro, pôs a  mãe no meio. Levô uma   bolacha e ficô doido: enfiô o braço no focinho do  outro. Aí os  dois rolô no  chão.

Nossa  conversa, então, voltou-se para a variedade linguística usada pelo boy: o que significava, no  texto,  o  uso de expressões como “estrangero”, “estranhô”, “levô”, “enfiô”? Havia construções que podem  ser consideradas erros gramaticais? Gíria é erro gramatical  ou  corresponde a um determinado  nível de linguagem? O  que a turma acharia  se a  professora de Língua Portuguesa entrasse na sala dizendo  “E ae, beleza?”

Foi  difícil para os meninos  entenderem  que  gírias não constituem um erro gramatical e, principalmente, que a noção de “erro” é  um conceito  discutível no ensino  de línguas.  Uma das alunas perguntou-me: “Mas, professora, então me dá  um exemplo de erro  gramatical!”. Eu poderia ter começado  pela frase da aluna, já  que  “me dá” está em  desacordo  com o  que diz a chamada “norma culta”.  Expliquei, então, que  os “aristarcos” consideram erro gramatical todo desvio de concordância (como  em “esses caras não  é  bom  da bola”), sintaxe, ortografia… Concluímos, pois, que a intenção  do  narrador, ao  criar a fala  do  boy, era apresentar, por meio da escrita, a maneira de falar de um personagem que pertencia a um grupo social diferente daquele a que pertenciam  os  gramáticos. A nossa discussão  continuará  na próxima segunda-feira.

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Sala de Aula – variedades linguísticas

1 Comment

  1. Professora andréa , tem um algumas perguntas do meu texto para fazer que não estou conseguindo interpretá – las , como uma assim .. O narrador é favorável ou contrário ao modo como praxedes e aristarco vêem a gramática ?

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Andréa Motta

Professora de Língua Portuguesa , Literatura e Formação do Leitor Literário no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro.

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